O Candidato
9 de Setembro de 2015; Congresso Nacional; Brasília.
Dia de visita guiada a casa legislativa brasileira, pois passando semana da independência na capital federal era oportunidade para observar a rotina dos congressistas eleitos pelo povo e ver quais suas pautas. As terças e quartas são os dias ideais se quiser acompanhar. Nos outros dias, eles não estão lá.
No plenário da Câmara dos Deputados, sessão solene a cidade de Quixeramobim com políticos cearenses que voltariam no mesmo voo já no dia seguinte. No Senado vazio, funcionários preparando o cenário.
No Salão Verde (aquele onde os jornalistas gravam), manifestação de funcionárias contra regras que pretendiam determinar código de vestimenta na Câmara, restringindo o uso de minissaia e decote.
No auditório anexo, o deputado carioca Jair Bolsonaro lançava sua pré-candidatura a Presidência da República. Aquele mesmo que batia ponto no SuperPop da RedeTV e CQC da Bandeirantes com seu discurso "conservador" recheado de impropérios em debates "polarizados". Poucos estudantes e alguns curiosos sentaram para ouvir "propostas" que batiam no governo Dilma, iniciando o segundo mandato mas já encaminhado para o fim, prometiam maior segurança pública e "mudar tudo isso que ta aí".
Ao final pensei, esse vai ser o candidato a discutir as funções do aparelho excretor, defender a família tradicional brasileira, duelar contra a candidata do PSOL, exaltar os militares e conseguir 1% dos votos.
Naquele época, ele tinha recém deixado de ser militar da reserva e virado capitão reformado do exército. Uma trajetória controversa que o livro reportagem "O Cadete e o Capitão", publicado pela Todavia, investiga ineditamente: o abandono da carreira militar e o ingresso na vida política do atual presidente.
O Cadete
Na primeira parte do livro acompanhamos um resumo da carreira militar desde seu ingresso na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) e posterior efetivação na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Onde ganhou alcunha "Cavalão" devido à sua boa saúde e força física. Se especializou em paraquedismo, serviu dois anos no Grupo de Artilharia de Campanha (GAC) em Mato Grosso do Sul, voltou para Deodoro (RJ) e cursou a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO).
Uma carreira inquieta mas até então "impecável" que segundo registro de seu comandante em 1978:
... desempenhou várias funções com desembaraço e eficiência, demonstrando suas qualidades de excelente oficial de artilharia.. dando prova de seu elevado espírito de disciplina, responsabilidade e camaradagem, além de seu excelente preparo físico.
O autor inteligentemente cita trechos de "Jair Messias Bolsonaro: Mito ou Verdade", escrita pelo filho Flávio, que enaltece a figura paterna através de fatos dificies de verficar. Por exemplo, a lenda que o jovem Jair forneceu dicas para os militares sobre esconderijo de Carlos Lamarca, que havia montado um campo em Vale do Ribeira para treinar guerrilheiros contra a ditadura. Uma história mal contada.
Essas narrativas que mitificam o personagem são confrontadas com registros oficiais que relatam atividades paralelas como plantio de melancias na fronteira; viagens ao Paraguai para "trazer muamba" e até a uma região de garimpo no interior da Bahia. Tentativas "empreendedoras" que lhe valeram o seguinte "puxão de orelha", registrada em março de 1983, pelo coronel Carlos Aberto Pellegrino:
Deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de 'garimpo de ouro'. Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeiramente.
Ambição que o tornou figura pública em 1986 ao escrever para a Revista Veja um artigo sobre o baixo soldo recebido. Virou uma liderança para soldados descontentes e pária para o Ministro do Exército.
O Capitão
Um ano depois, já capitão e pai de três filhos, voltou as páginas da revista nacional em reportagem que revelava um plano de explodir bombas junto com o capitão Fábio Passos na Vila Militar, AMAN e vários quartéis do Rio de Janeiro. Uma operação batizada "Beco sem Saída" pela reporter Cássia Maria, que mostrava insatisfação com vencimentos e tratamento da cúpula do Ministério do Exército.
Se antes tinha ficado 15 dias preso por transgressão disciplinar, ao reincidir e ser suspeito de planejar ato terrorista virou réu no Supremo Tribunal Militar (STM), que decidiria se ele permaneceria na ativa.
Com acesso as evidências e cinco horas de áudio do julgamento, o autor transcreve perícias dos croquis da bomba e manuscritos feitos para a jornalista da Veja e atribuídos ao réu. As contradições entre laudos conclusivos para o Conselho de Justificação do Exército e "transformados em inconclusivos" no STM são esclarecidas. Documentos e votos são reproduzidos na íntegra em diversas páginas do livro.
Na defesa de Bolsonaro, desvalorizando testemunhas e provas que fosse a fonte da repórter de Veja, temos vislumbres das narrativas "fake news" contra a imprensa que pratica desde sempre.
Muitos personagens envolvidos se recusaram a dar entrevista para o autor e outros não lembravam detalhes do julgamento. Fazendo com que as materias publicadas na imprensa, e principalmente as fichas da vida militar de Bolsonaro além dos depoimentos e autos arquivados no STM guiem a história.
A sentença judicial do Supremo Tribunal Militar encerra o caso, que a partir de agora passa a fazer parte da história da corte, da história de Veja, e da biografia do capitão, bem como de seu prontuário.
Nos bastidores do Jornal Nacional em 2018 como candidato a ser entrevistado, Jair Bolsonaro contou para Ali Kamel, ex editor-chefe de Veja no Rio e hoje diretor de jornalismo da Globo, que tinha encontrado Cassia Maria há dez anos em um aeroporto, não a reconheceu e o seguinte diálogo aconteceu:
- Deputado, sou aquela repórter de Veja que denunciou o senhor. - Que denunciou que nada! Você me catapultou para a política!
O candidato "anti-corrupção". O cadete "cavalão". O mito "capitão". Ele virou presidente da nação. Ele não.
O Cadete e O Capitão: A Vida de Jair Bolsonaro no Quartel
Luiz Maklouf Carvalho; Todavia Livros; 256 páginas; 2019.
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