João, o Barqueiro | Iradex

João, o Barqueiro

A vida, essa sapeca, nos apresenta tantos personagens diferentes, com tantas histórias complexas. Naquele dia, ela me apresentou João.

João, o Barqueiro é um conto escrito por Emilia Braga, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


João, o Barqueiro

Sempre fui das pessoas que gosta de ouvir o que as pessoas tem pra contar, e tenho encantamento particular por quem vive em mundos muito diversos do meu, especialmente os que vivem em lugares remotos. Hoje vim contar a história de uma pessoa que conheci em uma viagem que fiz ao Mato Grosso. Hoje falarei de João, o barqueiro.

Por 26 dias, um grupo de professores e estudantes (e eu, monitora) estivemos acampados em uma área de proteção ambiental, sem energia ou telefone, sem muitos recursos, à beira de um rio chamado Rio das Mortes, e há cerca de 1h de distância de barco de qualquer resquício de civilização. Lá no Parque conhecemos João, um rapaz que se fez presente durante todo o curso de campo.

Seu papel era nos dar suporte para todas as atividades que ele conseguisse acompanhar, fosse pilotando o barco, abrindo caminho na mata ou verificando a existência de rastros de onça. Ele era um civil da cidade de Novo Santo Antônio, vizinha ao Parque Estadual do Araguaia, que se dizia apaixonado pela beleza da natureza, e trabalhava voluntariamente em prol dela.

Como fui como monitora da disciplina que estava sendo ministrada, era variável o dia em que passava os dois períodos em campo; a maioria deles eu fiquei na base corrigindo relatórios, arrumando os materiais das práticas, escrevendo as metodologias das atividades, e, lógico, fazendo fotos dos bichos, das paisagens, pescando e sofrendo com os borrachudos.

João estava diariamente na base, sempre à disposição para qualquer emergência minha ou de qualquer pessoa que lá estivesse (como o dia em que um professor metido a McGyver passou a faca na mão e teve que ir para o hospital). João e seu maço de cigarros San Marino sempre estavam lá na parte de trás da base, perto dos marimbondos assassinos, arrumando o chuveiro improvisado, consertando o lampião a gás, limpando o terreno para reposicionarmos as barracas e fugir dos cupins... Quando não, estava na varanda da frente, me fazendo companhia e contando os causos pantaneiros - bem interessantes, por sinal.

Lembro um dos momentos de maior gargalhada (de alívio) quando estávamos eu e uma professora conversando e nadando na baía onde aportávamos os barcos, e João corria de um lado ao outro com as mãos na cabeça, chamando nossa atenção e pedindo que saíssemos de lá. Não sabíamos que aquela área era repleta de piranhas, que tinha um jacaré enorme por perto e que ali ao lado, nas pedras, morava uma temível Pirarara. Mas ele sabia, e nos alertou a tempo, ufa!

O denominamos de "barqueiro" porque sua principal função durante nossa estada foi dirigir um dos barcos para nós, bocós. Mas na vida normal João era o "Severino" da parada, e fazia isso mesmo: cara-crachá, cara-crachá. João, junto com Erson, o gerente do Parque, faziam rondas por terra e por água, com formulários de autuação e câmera fotográfica. O Erson gostava do que fazia, e era concursado do Estado, recebia pra aquilo. João, não. João fazia pelo amor e pelo senso do que era o certo. Ele sempre foi pantaneiro, e dizia ter visto tanta mudança acontecer, dos pescadores locais perderem espaço pros gringos, pros deputados, pros caras que iam pescar pirarucu, pintado, jacaré...

João era "da paz" demais, tinha filha e neto, que tivemos oportunidade de conhecer em uma noite de festejos. João era da teoria de que o homem tinha que ter uma mulher em cada porto, e, nos churrascos encervejados, isso dava muito pano pra manga... Mas nunca, nunca faltou com o respeito com qualquer uma de nós, mulheres, que estávamos lá. João era íntegro, e por nunca querer ferir seus princípios, dizia não beber muito na cidade pra não dar abertura para os safados que porventura quisessem se valer da amizade para a contravenção.

Na noite antes de partirmos, despediu-se rapidamente do grupo e individualmente, dizendo não querer estar presente quando fôssemos saindo, porque o parque voltaria a ficar calmo e ele havia se divertido muito naquele mês com nossas bagunças.

João e Erson estavam em uma incursão de fiscalização corriqueira dois finais de semana depois que partimos e foram alvejados a tiros.

Erson ficou hospitalizado. João, infelizmente, não resistiu e faleceu.


Esse conto foi escrito por Emilia Braga para o Contos Iradex.
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Sobre o autor: Emilia Braga é bióloga, doutora em Ecologia e ama observar o mundo ao redor. Sofre de verborragia crônica e de fraqueza aguda por brigadeiro.
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