MCDXXIII: Parte 1 - A Pizzaria | Iradex

MCDXXIII: Parte 1 - A Pizzaria

Todos temos na infância aquele lugar estranho que desperta medo e curiosidade, geralmente em medidas iguais. Essa é a história de um desses lugares.

MCDXXIII é um conto escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto será publicado em 2 partes.


SUMÁRIO

- Parte 1 - A Pizzaria

- Parte 2 - Eu


A PIZZARIA

Não lembro exatamente a primeira vez que notei a pizzaria.

Até onde eu sei, ela sempre esteve lá, no número 1423 da rua paralela à da minha casa, socada entre prédios residenciais muito mais modernos. Quer dizer, deveria ser o número 1423, pela lógica, mas não tinha sinalização nenhuma na fachada, apenas uma placa (letras brancas em fundo verde) com os dizeres: “Venha comer a tradicional pizza de queijo coalho.”

Nunca fui atraído pelo sugestivo chamado (até porque eu não gosto de queijo coalho), mas aparentemente as outras pessoas também não, pois todas as vezes em que passei na frente da pizzaria ao longo dos anos ela estava sempre vazia. A não ser por um solitário senhor careca e de barba, que eu acreditava ser o dono do lugar.

Às vezes eu passava de manhã, indo pro colégio, e cedinho o homem já estava lá, sentado numa mesa, sozinho, lendo um livro. À tarde quando eu voltava pra casa, não via ninguém por lá (imagino que ele tivesse ido almoçar em casa, ou algo assim). De vez em quando, voltando da casa de um amigo ou depois de um jogo de futebol, eu flagrava o momento em que ele ia embora, lá pelas 21h. Ele dirigia um Gol prateado, que só então percebi que sempre ficava estacionado em frente à pizzaria.

Confesso que era meio fascinado pelo lugar (acho que isso já deu pra perceber). Mas, mesmo que morresse de curiosidade, demorou para que eu tivesse a coragem pra finalmente tentar desvendar esse mistério.

Nunca esquecerei aquele dia. O dia que mudou minha vida.

Foi em dezembro. Dia 15. Lembro bem disso porque era o dia do meu aniversário e uma semana antes eu tinha quebrado o dedo. Era começo da noite (então teoricamente o que mudou minha vida foi uma noite e não um dia, mas eu não vou voltar e apagar porque detesto rasuras e também não vou começar tudo de novo porque não se deve estragar um bom pedaço de papel) e eu tinha saído pra passear com meu cachorro. Já estava voltando pra casa quando passei em frente à pizzaria e algo estalou na minha cabeça.

“Vou entrar”, disse a mim mesmo, com uma convicção que seria impossível convencer até a mim mesmo.

Entrei diretamente no salão, já que ele não tinha propriamente um hall de entrada ou coisa parecida. Você entrava e já estava nesse local repleto de mesas (umas 10), com quatro cadeiras cada. Como sempre, o lugar estava completamente vazio. Nem a televisão estava ligada naquele momento. O silêncio seria absoluto, não fossem dois sons que de forma alguma se harmonizariam.

Um deles era uma música, que eu logo reconheci como sendo Atom Heart Mother, até porque eu morria de medo dela nessa época (mas desde então passou a ser uma das minhas preferidas), e que saía baixinho de caixas de som instaladas estrategicamente nos cantos do salão.

O outro som era o grasnido de patos. Sim, patos.

Era bem mais alto que a música, e parecia vir dos fundos do salão, onde identifiquei uma espécie de cercadinho. Meu cachorro logo entrou em modo de ataque e quis partir para  onde estavam os barulhentos bichos.

Foi enquanto eu tentava conter o ataque ensandecido do meu cachorro (o que foi bem difícil, já que eu só tinha um braço disponível pra fazer isso) que percebi, tarde demais, que não estava mais sozinho.

Atrás de mim, ninguém menos que o senhor careca e barbudo, que eu imaginava ser o dono do lugar e, visto assim de perto, me pareceu muito familiar. Imaginei certo, já que ele, ao ver que eu tinha me virado, sem nada dizer, andou vagarosamente para trás do balcão, abaixou-se e começou a mexer em alguma coisa que eu não conseguia enxergar.

No espaço de um minuto que ele demorou pra reaparecer, pensei em todas as opções de fuga (que não eram poucas, já que bastava dois passos longos e eu estaria na rua) para quando ele puxasse a escopeta que com certeza guardava atrás do balcão. Mas qual não foi minha supresa quando vi que o que ele trazia nas mãos não era uma escopeta de cano duplo cerrado, mas uma pizza grande, congelada.

Com a mesma calma, ele percorreu a distância entre o balcão e o que identifiquei como um forno. Abriu a tampa e colocou a pizza lá dentro. Virou-se e disse:

“Pronto, em 15 minutos você finalmente vai provar a tradicional pizza de queijo coalho.”

Continua...


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursa Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex, tanto no site como no podcast. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
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