MCDXXIII: Parte 2 - Eu | Iradex

MCDXXIII: Parte 2 - Eu

Todos temos na infância aquele lugar estranho que desperta medo e curiosidade, geralmente em medidas iguais. Essa é a história de um desses lugares.

MCDXXIII é um conto escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto foi publicado em 2 partes.


SUMÁRIO

- Parte 1 - A Pizzaria

- Parte 2 - Eu


EU

Não tive forças pra perguntar como ele sabia que eu nunca tinha comido a tradicional pizza de queijo coalho, ou porque ele havia colocado a pizza no forno se eu nem pedira nada, ou ainda porque diabos ele tinha patos numa pizzaria. Todas teriam sido perguntas formidáveis e inteligentes, coisa que eu não era na época (e continuo não sendo).

Por isso, a única coisa que consegui fazer foi soltar a guia do cachorro, que disparou, com seus 10kg de puro ódio, em direção ao cercado dos patos. Já estava me preparando para correr e evitar o que poderia ser a maior surra que um cachorro já tomou na vida (hoje eu sei que tipos de patos eram aqueles), quando o homem falou novamente:

“Nem se preocupe, ele não vai conseguir passar pelo cercado. Sente, temos pouco tempo e muito o que conversar.”

Sentei, quase que imediatamente, sem saber muito bem porque a voz daquele homem mexia tanto comigo. Ele continuou:

“Não vou te iludir e dizer que você vai sair daqui com todas as respostas. Basta saber que um dia você vai receber um envelope e dentro dele estará uma carta, um livro e um molho de chaves. Nesse dia você vai finalmente saber de tudo. Até lá, só peço que tome cuidado e não esqueça desse lugar.”

Não sei se foi o tempo ali que passou mais rápido, ou se foi ele que falou muito devagar o pouco que tinha pra dizer. O certo é que quando terminou de dizer, levantou-se e foi novamente para trás do balcão. Tirou a pizza do forno e colocou-a numa embalagem quadrada com algumas palavras em italiano (eu acho). Voltou para a mesa trazendo a pizza de um jeito estranho, com uma mão por baixo (a esquerda) e a outra por cima, como se fizesse força pra não deixar algo que estava dentro sair.

Estendeu a pizza pra mim por cima de mesa, dizendo:

“Pronto, agora você já pode ir pra casa.”

Recebi a embalagem e a segurei da mesma forma que ele, mão esquerda por baixo e direita (com gesso) por cima. Senti um cheiro bom vindo da caixa, misturado com o inconfundivel fedor do meu cachorro (que devia ter sido atraído pelo cheiro bom) e de um perfume muito familiar, mas que eu não consegui reconhecer.

Já conformado que não conseguiria dizer nada (nem mesmo o óbvio de que eu não tinha dinheiro pra pagar a pizza) e querendo simplesmente sair dali, fui interrompido pela ultima vez por aquela voz que eu finalmente reconheci:

“Parabéns! É terrível fazer aniversário perto do Natal, mas acho que não temos mais idade pra querer ganhar presentes, não é?”, uma breve pausa, apontando pro meu gesso e sorrindo, “Ah, a propósito, isso vai deixar uma cicatriz legal.”

O sorriso foi o último ponto que se ligou.

A voz, a mão, o cheiro.

Eram todos meus.

Saí de lá transtornado, sem olhar pra trás, e até hoje não sei como consegui chegar em casa com uma só mão pra levar uma pizza, um cachorro e tantas dúvidas. Mas cheguei. E a pizza realmente era boa.

O tempo passou. Eu cresci, me mudei, mas nunca esqueci aquela noite. Também nunca voltei a ir à pizzaria, nem encontrei mais o careca. Passei algumas vezes em frente e senti a mesma vontade maluca da primeira vez. Quem sabe só uma passadinha rápida? No último segundo eu sempre desistia, não sei se com mais medo de descobrir se eu estava louco ou não.

O que fiz então foi esperar. E esperei. E esperei. Até o dia, muitos anos depois, em que recebi o tal envelope.

Não consegui ver quem o deixou. Ele simplesmente apareceu na frente da minha porta. Com as mãos tremendo, abri e descobri que dentro havia exatamente o que eu já sabia que encontraria: uma carta, um livro e um molho com quatro chaves.

Li a carta (assim como você está fazendo agora), e ao chegar ao fim, voltei novamente para o começo e a reli (como você irá fazer). Repeti esse processo três vezes e a cada nova leitura minha mente dava mais uma volta (bem como a sua).

Sei exatamente o que passa pela sua cabeça agora (até porque ela já foi minha, apesar da minha não ser ainda a sua). Então, pra facilitar, vou lhe dizer no que você precisa se concentrar:

1 – Leia o livro (as respostas estão todas nele; ou seriam mais perguntas?).

2 – Cuide da pizzaria (as três primeiras chaves são dos cadeados das portas e a receita da pizza está no verso).

3 – Alimente os gansos (sim, são gansos e não patos).

4 – Abra o baú que os gansos guardam (a última chave serve pra isso).

5 – Proteja o segredo até o próximo chegar.

Simples. O resto vem com o tempo.

Queria poder te contar tudo, mas existem algumas regras (leia o livro!) que me proíbem de dizer exatamente o que vai acontecer. Então, vou dizer apenas uma coisa (talvez a mais importante): você vai encontrar muitas elas; mas quando Ela aparecer, aproveite cada segundo.

Agora é com você.

Att,

Eu

 


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursa Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex, tanto no site como no podcast. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.