Saindo do Barroco, finalmente chegamos ao meu período preferido: o Clássico! É nessa fase que encontraremos nomes bem conhecidos como Mozart, Beethoven e Schubert. Mas antes, precisamos falar sobre outro personagem, às vezes ignorado, mas sem o qual provavelmente a música não seria a mesma: Haydn.
O Austríaco de Duas Cabeças
Joseph Haydn (fala-se Ráiden, igual o personagem do Mortal Kombat) nasceu em março de 1732, em Rohrau, uma pequena vila na fronteira entre a Áustria e a Hungria.
Como seus pais não tinham instrução musical, apesar de grandes entusiastas e apreciadores, o talento do jovem Haydn precisou ser lapidado fora de seu lar. Muito cedo, aos 6 anos, Haydn mudou-se para uma cidade próxima, Hainburg, para estudar com um parente distante, Johann Frankh, que era professor de música e diretor do coral da cidade. Mal sabia ele que nunca mais voltaria pra casa.
A vida em Hainburg era um suplício pra Haydn. Vítima de maus tratos, vivia com fome e imundo, sendo ridicularizado pelas outras crianças de sua idade e pelos adultos que o viam. Suas atenções foram todas voltadas para a música, e ele logo se destacou no cravo e no violino. Mas foi com a sua voz que Haydn começou a mudar sua vida.
Em 1740, após ouvi-lo cantar no coral da cidade, um famoso diretor de coral vienense convidou Haydn para mudar-se para a capital e integrar o coral de sua principal igreja, a Stephansdom.
As coisas melhoraram, mas não tanto assim. Haydn morava junto com os outros quatro coristas na capela que ficava ao lado da igreja, e nem sempre era alimentado. Os coristas eram estimulados a cantarem bem e assim serem convidados a recitais nas residências nobres de Viena, onde eles seriam finalmente alimentados.
Haydn passou nove anos no coral da Stephansdom, até que, quase adulto, sua voz já não servia para os acompanhamentos e ele foi literalmente posto na rua. Quase mendigou; só não o fez, pois foi acolhido por um amigo, que lhe ofereceu um quartinho nos fundos da casa de sua família. Procurou diversos trabalhos, com os quais mal conseguiu sobreviver durante a próxima década.
Foi professor, músico de rua, organista e, principalmente, músico freelancer. Seu talento como violinista lhe proporcionou uma reputação que foi crescendo à medida que tocava com orquestras nas recepções nobres vienenses.
Quase 20 anos depois de deixar a casa dos pais, em 1757 Haydn finalmente conseguiu seu primeiro emprego fixo, e as coisas realmente começaram a mudar. Contratado pelo conde Morzin para ser seu Kapellmeister (diretor musical), rapidamente prosperou e se desenvolveu. Como durante sua época de corista Haydn não recebeu instrução específica para composição, apenas para execução, esse tempo de tranquilidade junto ao conde Morzin foi essencial para que ele pudesse completar seus estudos. Suas primeiras composições de destaque são dessa época.
No entanto, quem parecia não prosperar era seu empregador. Atolado em dívidas, o conde Morzin teve que abdicar de grande parte de seus protegidos, entre eles Haydn. O que poderia ser uma reviravolta negativa, acabou se mostrando uma oportunidade sem igual, pois logo depois Haydn foi contratado pela casa Esterházy, tradicional e imensamente rica família húngara, para quem prestaria serviços até o fim de sua vida.
Seu contrato com os príncipes de Esterházy era de total exclusividade, ou seja, Haydn só poderia compor obras para serem executadas nas festas e reuniões da própria família. E mais, apesar de realizar pequenas viagens com os nobres, Haydn deveria ficar à disposição em uma das propriedades da família, seja no palácio em Eisenstadt, ainda na Áustria, ou na distante casa de Esterháza, na Hungria.
Esse isolamento foi crucial para o surgimento da identidade musical de Haydn.
Como ele estava longe dos principais centros de criação e execução, o que ele possuía como inspiração para suas obras eram seus próprios sentimentos e a sua visão de como a música deveria ser. Nas suas próprias palavras, ele fora “forçado a ser original”.
Por seu primeiro contrato ser de exclusividade, nos primeiros 10 anos de serviço, a música de Haydn só era conhecida de seus empregadores e dos convidados que lhe ouviam tocar nas famosas festas da nobreza húngara. No entanto, para comemorar uma década de serviços, o príncipe Nikolaus renegociou o contrato com Haydn, permitindo-lhe que fizesse obras por encomenda para outros nobres, ainda que continuasse a exigência de Haydn permanecer nas propriedades Esterházy.
Assim, mesmo isolado do mundo, Haydn começou a ficar conhecido no resto da Europa, de Viena, centro cultural mais próximo, até a distante Londres, que buscava algo mais do que as óperas de Handel. Aos poucos Haydn foi conseguindo autorizações para pequenas viagens, e nessas excursões foi percebendo que sua música era cada vez mais apreciada. Numa de suas idas à Viena, por exemplo, ele recebeu inúmeros convites de nobres para deixar a casa Esterházy, mas como forma de gratidão, nunca aceitou nenhum dos convites. Foi justamente nessa viagem que ele conheceu outro compositor austríaco, de nome Mozart, que lhe impressionou bastante e que viria a se tornar seu amigo. Eles, inclusive, tocavam juntos em quartetos de cordas nas festas da nobreza vienense.
Com a morte do príncipe Nikolaus, em 1790, Haydn teve seu contrato modificado novamente, e agora podia viajar livremente pela Europa. Passou os próximos anos excursionando, conhecendo e criando música, sempre modificando seu estilo de acordo com o local que visitava. É nesse período que, numa passagem por Bonn, na Alemanha, Haydn conhece um jovem pianista que parecia muito promissor e resolve torná-lo seu pupilo. Eles mudam-se para Viena e depois de um breve período de aprendizado mútuo, Haydn segue viagem e deixa o pupilo aos cuidados da sociedade vienense com a seguinte recomendação: “cuidem bem dele, e o mundo ainda falará muito desse jovem Beethoven”.
Seus últimos anos de vida não foram tranquilos. Por volta de 1803, Haydn passou a sofrer de fortes dores e desorientação, o que lhe impossibilitava de compor. Hoje, acredita-se que a doença que o acometeu era a arteriosclerose, mas na época não se conseguiu chegar a nenhum diagnóstico ou tratamento, e Haydn morreu meio à dor e à loucura, além, claro, de algo que lhe acompanhou durante toda a sua vida, a solidão.
Fato curioso, pra não dizer bizarro, aconteceu após seu sepultamento. Como em 1809 a Áustria estava em guerra e Viena sob ocupação do exército de Napoleão, Haydn teve um singelo funeral e foi rapidamente enterrado. Mas, sem a cabeça!
Esta foi roubada por uma dupla que queria realizar estudos de frenologia, teoria revolucionária da época que pretendia determinar o caráter, a capacidade e o grau de criminalidade de uma pessoa apenas pela análise de seu crânio.
Os restos mortais de Haydn só foram reunidos novamente em 1954 e removidos para seu descanso final na igreja de Bergkirche, em Eisenstadt, onde permanecem até hoje, com duas cabeças.
Por que ouvir?
Assim como dissemos que falar de Handel é falar de ópera, falar de Haydn é, inevitavelmente, falar de sinfonia. Apesar de não ter criado o termo ou a estrutura, Haydn é considerado o “Pai da Sinfonia” principalmente por tê-la popularizado como a forma máxima de composição, aquela que usa mais instrumentos, que tem movimentos mais longos e que dá a possibilidade de maior complexidade melódica. Foram mais de 107 sinfonias compostas ao longo de seus 77 anos, mais do que qualquer outro compositor.
Mas Haydn é sinônimo de excelência também em outras formas de composição. Na verdade, em todas elas. Quartetos (que inclusive lhe atribuem também paternidade), trios (piano, violino e cello), sonatas (para piano e violino), óperas, cantatas, concertos. Pode enumerar aí. Difícil dizer onde Haydn não se destacou. Por ter se isolado do cenário musical europeu durante boa parte de sua carreira, Haydn foi forçado a criar para agradar seus patrões, muitas vezes sem nem saber se o que estava criando era original ou não.
Além disso, Haydn costumava brincar em suas composições e apresentações. Às vezes, ele inseria falsos finais em meio aos seus quartetos de corda, que deixavam o público em dúvida se deviam aplaudir ou não. Ou então causava sobressalto nos espectadores com mudanças drásticas de tom durante os movimentos mais lentos.
Outro detalhe marcante de sua música é o sentimento. Pela primeira vez, vemos um compositor realmente se transfigurar em sua obra. Sua vida solitária e cheia de percalços era todo o combustível que precisava para criar composições que beiravam a melancolia em muitos momentos. É música escrita para dentro, característica essa que irá permear o período Clássico e ser extremamente explorada no Romântico, como um forte contraponto à música barroca, onde se exaltava o exterior, seja o sacro ou o frívolo.
O que ouvir?
Gosto de dividir a música de Haydn em três grandes grupos: sinfonias, cordas (quartetos, sonatas e concertos para violino) e piano (trios, sonatas e concertos para piano). Vou indicar a minha obra preferida de cada um dos grupos.
Sinfonia nº 6: "Le Matin" - Logo que foi contratado pela família Esterházy, Haydn compôs três sinfonias para "mostrar serviço". Primeira das três, a Sinfonia nº 6 recebeu o nome "Le Matin" (A Manhã) devido ao seu movimento de abertura, o Adagio, remeter ao nascer do sol e sua sequencia, o Allegro, ser claramente uma alegoria ao despertar de um bosque. As outras duas sinfonias, nº 7 e 8, receberam os nomes de "Le Midi" (A Tarde) e "Le Soir" (A Noite).
Essa foi uma das obras que mais impressionou Beethoven no período em que foi aluno de Haydn. Por isso, quase 40 anos depois de sua composição, Haydn foi homenageado por Beethoven em sua Sinfonia nº3, a Heróica. Claramente se percebe a semelhança entre os temas de flauta (Haydn), simbolizando o despertar do bosque, e os de trompa (Beethoven), simbolizando o despertar da Europa para as luzes da Revolução.
Quarteto de cordas em Ré maior, Op. 64 nº5: "Die Lerchen" - Talvez a minha obra preferida de Haydn. Aqui podemos notar toda a carga emocional que ele desejava passar pras suas obras. Não se sabe ao certo qual a inspiração para a obra, mas dá pra se ter uma ideia pelo título que lhe foi atribuída pelo próprio compositor. Die Lerchen (A Cotovia), me parece uma alusão direta ao período em que Haydn foi corista em Viena. Assim como uma cotovia presa em uma gaiola, ele cantava por comida, que geralmente não era suficiente pra saciar sua fome.
O tocante tema central do segundo movimento, o Adagio Cantabile, nos leva novamente a Beethoven. Uma das grandes lições que seu mestre lhe ensinou foi justamente a da emoção ser passada diretamente às composições. E ouvindo os quartetos de Beethoven, percebe-se que o aluno aprendeu bem a lição.
Sonata para Piano em Fá menor: "Un piccolo divertimento" - Apesar de ter se casado, Haydn nunca foi feliz. Sua esposa era irmã de seu primeiro amor, que lhe rejeitou. Como não podiam dissolver o casamento (naquela época isso era pecado mortal), a solução para os dois foi de arranjar amantes; ambos os tiveram em grande quantidade. O que é um pouco estranho para Haydn, devido à sua aparência: era baixinho (fruto de sua dura infância sem alimentação adequada) e muito feito (tinha marcas de varíola e o nariz deformado).
A mais famosa de suas amantes foi a vienense Maria Anna von Gerzinger, também ela infeliz no casamento. Sempre que podia, Haydn ia para Viena ficar com ela, e quando não podia, lhe escrevia cartas e compunha músicas. Quando Maria Anna morreu repentinamente em 1793, Haydn ficou transtornado. O fruto de sua agonia foi uma sonata para piano extremamente carregada, que ele ironicamente batizou de "Um pequeno divertimento".
Onde já ouvi?
Músicas de Haydn já foram usadas em muitos filmes, como Prenda-me se for capaz, Noiva em fuga, Minority Report e Entrevista com o Vampiro.
Mas, com certeza, sua música que ficou mais famosa foi o Quarteto de cordas em Dó maior, Op. 76 nº 3, conhecido como "Imperador", cujo segundo movimento tornou-se em 1922 o hino nacional da Alemanha, o Deutschlandlied.
E falando em Alemanha e em hino, deixo uma bela lembrança pra vocês.
Até a próxima!