Uma sala escura, um velho enrrugado cheio de segredos e um cara que não faz ideia de no que se meteu.
Seja bem-vindo, Fahorn é um conto escrito por Debora Carvalho, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
Seja bem-vindo, Fahorn
-Seja bem-vindo, Fahorn – O velho falou lentamente quando os guerreiros usando armaduras pesadas me arremessaram no quarto. O ambiente parecia muito mais um calabouço que qualquer outra coisa. Paredes de pedra escurecidas pela umidade, nenhuma janela e apenas uma porta. A única fonte de luz são os dois pares de tochas presas às paredes. No centro, atrás de uma mesa de madeira, um velho branquelo e enrugado aponta para uma cadeira e espera que eu me sente. Obedeço por falta de opção.
-Você sabe por que nós o trouxemos aqui?
-Não – Respondo rapidamente. É uma mentira.
-Fahorn, por favor... Você certamente não é o homem mais inteligente que esteve sentado nesta cadeira, então não se dê ao trabalho, nós sabemos sobre o seu dragão.
Congelo tentando pensar em uma saída.
-Dra... Dragão? Que dragão... Eu nunca vi um dragão, são apenas lendas...
-Eram – ele corrigiu, colocando uma caixa sobre a mesa – O que você acha deste? – falou enquanto abria o receptáculo e arremessando o conteúdo sobre a mesa. O minúsculo réptil lá dentro rolou para fora desajeitado, não muito maior que uma lagartixa, esverdeado, com minúsculas asinhas tão finas que tornavam-se translúcidas.
Aquele era o meu dragão. Senti meu sangue esfriar e escutei as batidas do meu coração.
-Lindo não é... Tão frágil e delicado... Deixe-me adivinhar, você tocou uma pedra estranha, e ela se partiu... simples assim...
-Err... EU...
-Há muito nós julgávamos ter exterminado essa raça maldita da terra, mas... aparentemente, ainda restava um...
-Como descobriram?... Eu não contei a ninguém...
-Magia... – falou misterioso – ou talvez tenhamos ouvido falar sobre o círculo de fogo no céu... é fácil quando você sabe o que está procurando...
-Ele é meu...
-Sem dúvida é – falou o velho, lançando a criatura um olhar de desdém - Ele o marcou não foi? O meu fez o mesmo- ele falou puxando a manga da túnica e revelando a mão completamente negra, exatamente igual a minha.
-Você também tem um?
-Eu tinha... Quer saber o que ele me deu? Ele me deu isso – vociferou colocando sobre a mesa o coto da perna esquerda, horrendamente cicatrizado enquanto lançava olhares matadores ao minúsculo dragãozinho – Veja bem, agora ele é esta frágil criatura, que pede para ser protegida, e graças a essa maldita marca, protegê-la e tudo que você deseja, eu sei, já estive em seu lugar... Mas não vai ser assim pra sempre, eu vou te contar o que vai acontecer nos próximos 10 anos, escute em silêncio e não me interrompa. Os dragões escolhem seus servos, Não sabemos como ou porquê, mas às vezes, quando um humano toca na casca, ele marca sua vítima, e como um tipo de parasita ele desperta nela um instinto doentio de protegê-lo, alimentá-lo, de cuidar dele... Quando o dragão fizer dois anos, já será do tamanho de um cavalo, para se alimentar ele vai devorar ao menos uma ovelha por dia, o que eu imagino ser muito para um aldeão conseguir. Se não puder alimentá-lo, ele ficará cada vez mais irritadiço... Nessa fase, nascem as escamas, duras como ferro, e ele começa a tentar voar, o sopro já vai ser quente o bastante para queimar, mas ainda assim você vai amá-lo.
Enquanto contava, o velho rolava o minúsculo réptil debaixo de seu dedo indicador e a criaturinha se retorcia tentando se virar, mas era fraca demais para tal.
– Com cinco anos, ele será grande o bastante para voar, e caçar... Mesmo um boi não será o bastante para satisfazê-lo, a cada dia ele será mais feroz, violento e difícil de domar. Aos seis anos os chifres vão começar a crescer, aqui – falou, apontando o lugar – Nessa fase ele já vai ser forte o bastante para derrubar árvores do chão, suas garras serão com navalhas, e ele mal vai te deixar tocá-lo. Aos 10 anos, ele será finalmente adulto, terá o tamanho de um casebre, e seu passatempo preferido será assolar aldeias e devorar rebanhos inteiros, queimando tudo com seu sopro de fogo, e então o selo vai finalmente se quebrar. Quando isso acontecer, ele vai te caçar, e não importa o quanto você fuja... ele vai te encontrar e te devorar. O primeiro humano que um dragão abate é sempre seu dono... Com o poder de destruição de uma legião, só que muito mais violento, usando uma armadura praticamente impenetrável, sopro de fogo, garras tão afiadas quanto espadas, e é claro, a habilidade de voar, vencê-lo será quase impossível... E após matá-lo, o seu dragão poderá pôr ovos, mesmo sem nunca ter tido contato com um parceiro. E vai fazer do mundo um inferno...
-Isso... Não pode ser...
-Mas é. Há centenas de anos nossa ordem persiste na missão de caçar de dizimar estas bestas. Pensávamos ter vencido, mas veja bem... aqui está mais uma delas... E porque somos os mocinhos aqui, vamos ter dar duas escolhas Fahorn, matar o dragão, ou morrer.
-O que?
-Veja bem, eu vou te mostrar algo, talvez assustador, mas maravilhoso – ele murmurou com um sorriso malvado levantando o dragãozinho pela cabeça e então espremendo seu pequeno crânio entre o indicador e o polegar.
Os ossos quebraram com facilidade, e o sangue espirrou, o velho soltou a massa mole e inerte no tampo da mesa e no mesmo instante Fahorn caiu gritando e se contorcendo com a dor de cabeça que parecia estar rachando seu crânio e expulsou todo o ar de seus pulmões. Quando finalmente se recuperou, com lágrimas brotando dos olhos ele viu do tampo da mesa, fitando-o com seus olhinhos amarelos e curiosos, o dragãozinho novamente vivo.
-Como... Como isso é possível? Eu vi você matá-lo...
-Exato... Mas ninguém pode matar um dragão enquanto ele possuir um selo... Ninguém além de você meu filho. Enquanto você respirar, não importa a forma que eu use para matá-lo, ele vai usar sua energia de vida para retornar. Posso queimá-lo, esmagá-lo, mutilá-lo, qualquer coisa, ele voltará. A menos que você o mate, quebrando o pacto e pondo fim na vida da besta
-Eu... Eu não posso fazer isso.
-Nesse caso, resta-nos a segunda opção, matar você.
-O que?
-Caso você morra, ele morrerá imediatamente. Se matar um jovem fazendeiro for o necessário para manter a paz no mundo, eu mataria vinte iguais a você. Mas você possui o direito a escolha.
-Eu...
-Escolha Fahorn, use sua cabeça, a opção certa está bem clara aqui.
Olhei o dragão e a criatura me encarou de volta. Sem dúvida era belo e incrivelmente frágil. Todos os meus instintos gritavam um milhão de planos malucos para salvá-lo daquela situação. Aquilo não estava certo, eu sabia, devia ter percebido. Seus lindos olhos amarelos me perseguiam e, inquieto, ele balançava sua cauda no ar.
Estremeci, levantei a mão e a fechei em punho no alto, minha cabeça começou a doer terrivelmente, e meu corpo a convulsionar. Eu o amava? Sem dúvidas que sim, mas me amava em primeiro lugar, e antes que pudesse mudar de ideia, esmurrei a mesa e senti os pequenos ossinho se quebrarem.
Cai encolhido no chão, gritando e sentindo a pele queimar, a dor pareceu durar horas e apenas diminuiu quando, exausto, desmaiei. Horas depois acordei trêmulo, com as roupas encharcadas de suor. A sala estava vazia e as tochas haviam se apagado. A mesa, os cavaleiros e o velho haviam desaparecido. Se não fosse o fato de minha mão continuar completamente negra, eu mesmo duvidaria de minha sanidade.
E assim, os dragões foram extintos do mundo.
Esse conto foi escrito por Debora Carvalho para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.