por Mackenzie Melo
O ano era 1934 e é difícil esquecer dele.
Não que eu tenha vivido lá – pelo menos não que eu lembre. É o ano em que Agatha Christie, também conhecida como a Rainha do Crime, publica aquele que seria um de seus mais incríveis e celebrados livros, Assassinato no Expresso do Oriente.
Apesar de não lembrar quando li este livro pela primeira vez, lembro de ter ficado boquiaberto com a solução do mistério apresentado na trama. Como diz, em determinado momento, o senhorzinho bigodudo e suas características células cinzentas, “o impossível não poderia ter acontecido, logo, o impossível tem que ser possível, apesar das aparências.”
Hercule Poirot (pronuncia-se aproximadamente er-kiu-le poá-rrô) é o detetive mais famoso do mundo criado por Agatha – e provavelmente o segundo mais famoso no nosso mundo – atrás apenas de... (ora, ora, parece que temos um xeroque rolmes aqui). A história desse livro se passa quase toda dentro de um vagão de trem, onde, é claro, um assassinato é cometido e nosso detetive belga está presente para solucionar o caso, o que faz com maestria e elegância.
Para a família Lindbergh, o ano de 1932 é inesquecível.
Vivendo e escrevendo em sua época e se utilizando de eventos que de alguma maneira a marcaram, a Sra. Christie decide basear parte da história em circunstâncias acontecidas no caso real de uma família Estadunidense do Norte que teve o seu filho sequestrado e depois encontrado morto, mesmo com o resgate tendo sido pago.
No caso do livro, a família se chama Armstrong – ah, não se preocupe pois não darei spoilers dos pontos principais da trama. Essa informação está bem no começo do livro e não faz parte do mistério em si. Ela nos é entregue à medida que vamos conhecendo o personagem que será morto com 12 facadas em uma noite onde o Expresso do Oriente fica parado por causa de um deslizamento de neve.
A partir daqui, apesar de eu imaginar que viajar de trem através da Europa seria inesquecível para qualquer de nós que estivéssemos passeando por lá, a viagem através da Iugoslávia (hoje Sérvia, Croácia, Bósnia, Eslovênia, Montenegro, Macedônia e Kosovo) se tornou inesquecível para todos os passageiros daqueles dias fatídicos.
Em 1931, Agatha Christie, no mesmo trem, lembra as 24 horas que ficou presa por causa de chuva, inundação e parte dos trilhos terem sido danificados.
Essa foi a viagem na qual ela se inspirou para escrever alguns dos personagens do livro. Ela descreve essa viagem em parte na sua Autobiografia, e que também recomendo a leitura. Esses personagens são descritos sutilmente, através de pequenos detalhes que comporão um caleidoscópio psicológico.
Temos uma princesa desagradável, um italiano ameaçador, uma dama falastrona, um coronel durão, um secretário conspirador, um conde defensivo, uma condessa tímida, um médico curioso, uma governanta calma, um diretor apressado, um empresário inescrupuloso, um caixeiro-viajante espalhafatoso, uma sueca chorona, uma dama de companhia respeitável, um condutor prestativo, um criado inexpressivo, e isso tudo misturado com tiques, angústias, mentiras e lembranças que pelo menos um deles quer esquecer e deixar para trás. Quem dentre eles, entretanto, quer apagar a terrível lembrança do passado tirando a vida de um outro ser humano? Qual deles, ou quais, foi capaz de cometer esse assassinato tão brutal?
O ano é 1974. Lembro dele, pois foi quando eu nasci.
Além disso, e muito mais importante, é que 74 foi o ano da primeira adaptação para o cinema dessa história magnífica. Sidney Lumet faz um trabalho quase impecável na direção, nos fazendo viajar dentro e fora do Expresso do Oriente, dando rosto e ainda mais vida aos personagens através de atores e atrizes que fazem do filme uma obra prima dentre os filmes de mistério e detetive, que chegou a concorrer a seis Oscars e a ganhar inúmeros prêmios ao redor do mundo.
A película (sempre quis escrever isso num texto sobre filmes) se desenrola de maneira lenta, mas num crescendo, bem afinada com o livro. Para os dias atuais, em que histórias desse tipo têm que ter clima de aventura e pouco espaço para se pensar, a versão de 1974 pode parecer devagar. Entretanto, tendo reassistido alguns dias atrás, posso garantir que, se você quiser ver uma produção esmerada e com grandes atuações – inclusive Ingrid Bergman que ganhou Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo seu papel – vai gostar bastante dessa primeira adaptação.
Infelizmente não posso opinar sobre duas outras versões que foram feitas, ambas para TV, pois não tive acesso a elas até este momento. Uma com Alfred Molina e a outra com David Suchet como Hercule Poirot. Quem sabe consigo vê-las e depois adiciono comentários em um post scriptum...
43 anos se passaram e eu ainda lembro minha idade em 2017.
Kenneth Brannagh, ator e diretor Shakespeareano, não tão querido por muitos, mas de indubitável talento e visão, decidiu se aventurar a fazer uma versão remodelada do clássico de 1934, Assassinato no Expresso do Oriente. Para mim, e aqui eu sei que meu coração fala mais alto que minha razão, um dos melhores filmes que assisti no cinema em 2017.
O filme tem seus defeitos? Tem. Qual não tem? Nenhum. Logo, passo rapidamente pelo que menos gostei nele. Tem mais aventura do que devia – e olha que tem bem pouca. Mas talvez seja porque eu gosto muito do estilo do livro que não tem estripulias nem cenas de ação. Imagino que quem não leu o livro e vai assistir o filme antes, quando for ler o livro pode acha-lo meio chato, entediante. Tenho que dizer, entretanto, que para a audiência atual, as cenas de ação são necessárias. Um outro ponto é que eu teria escolhido pelo menos dois atores/atrizes diferentes para alguns papéis. Como sempre temos nossas preferências, entretanto, não creio que isso seja um defeito do filme. Os que eu trocaria não atrapalham, é questão de gosto pessoal mesmo.
Por outro lado, gostei muito de Kenneth Brannagh como Poirot e ainda mais de Michelle Pfeiffer, em especial a cena final que tocou profundamente a minha alma. Os planos abertos mostrando as paisagens deslumbrantes da viagem, o plano sequência no final do filme e o figurino também me chamaram muito a atenção, fazendo com que, mais uma vez, tivesse vontade de fazer essa viagem de trem inesquecível pela Europa. Espero fazê-la um dia ao som de boa música, ao lado de minha esposa e sem assassinato a bordo, de preferência.
Hoje, tenho que falar do que é também impossível esquecer, não importa quanto tempo passe: o amor.
Em 1974 Richard Rodney Bennett compôs a trilha sonora do filme original e nela estão algumas notas que, quando reouvi recentemente durante o filme, apesar de ter certeza que não lembraria a qual filme pertence, caso a ouvisse sem saber que era do filme – minha memória é péssima – tenho certeza que diria que ela já tinha me tocado anteriormente. Prestem atenção na cena inicial do filme regada pelos tons alegres, sombrios e assustadores da música que já nos informam que a trilha é um personagem indispensável na história.
Para a nova versão, Patrick Doyle, que colabora sempre com Kenneth em seus filmes, não deixa por menos com seu piano e seus temas marcantes que tocam fibras profundas em nossa alma. Dá para sentir a dor de Poirot quando ele lembra de seu amor perdido ao som de Ma Katherine e quando, no ápice da trama, nos olhos alterados de todos os suspeitos pelo sentimento que ebule no peito de cada um deles – e porque não também nos nossos – a música nos carrega durante toda a solução apresentada por Poirot, nos deixando em frangalhos e nos perguntando: o que faríamos se alguém tivesse querido, através de um crime bárbaro, nos fazer esquecer do maior amor de nossas vidas?
Branagh e Doyle compuseram uma das músicas mais melancólicas, mais pungentes que já ouvi no cinema. Com uma letra que evoca uma saudade profunda e uma vontade de jamais largar esse amor que é maior que a própria vida, eles parecem querer que ao ouvi-la nós possamos sentir o porquê de esse assassinato ter acontecido e quase concordar que teríamos feito o mesmo, se estivéssemos envolvidos na história.
Estou escrevendo esse parágrafo antes do inverno chegar, em um novembro alegre para mim, mas que, realmente, torna o céu mais escuro bem mais cedo que em outras épocas ano. Tenho quem me espere em casa e quem pode dançar comigo, quem eu quero e gosto de abraçar e quem ri e sorri comigo. Tenho quem pode compartilhar comigo os dias quentes de verão e os frios em noites escuras. Mesmo assim, confesso que ao ouvir essa música, um sentimento de compaixão toma conta de mim como se fosse eu que estivesse vivendo aquela situação.
Leia o Assassinato no Expresso do Oriente tendo ao seu lado (pelo menos em pensamento) alguém que você ama profundamente. Assista o filme de 74 procurando ver além das aparências, penetrando na mente dos que estão sendo investigados. Viva o filme de 2017, sentindo nos olhos e palavras, às vezes aparentemente caricatos, de alguns personagens, a dor do tempo que passa sem a presença daqueles a quem eles amam e que esse mesmo tempo teima em querer fazer com que se esqueçam desse amor que vence tudo. Ouça a trilha de 74 notando as sutilezas do mistério e da diversidade sonora que passeia pela Europa. Sinta a trilha de 2017 atravessando o seu coração que, apesar de sofrido e talvez sangrando, sabe que se tem algo que realmente nos faz sermos mais e melhores do que jamais fomos é o amor que entende e abraça muito mais do que julga e condena.
Torço para que, mesmo com minha terrível memória, eu possa lembrar por anos e anos do sentimento de satisfação que sinto agora ao pensar nessas músicas, nesses filmes e nesse livro.
Já para lembrar de quem eu amo eu não preciso torcer. Desde 1974, nunca esqueço.
Sempre lembre.