A estranha lógica infantil às vezes cria uma voracidade por conhecimento. Difícil mesmo é encontrar as respostas que os pequenos buscam.
Apêndice é um conto escrito por Malu Santiago, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
Apêndice
- Pai, pai!
- Agora não Paulinho, tô assistindo o jornal.
- Mas pai, é importante.
- No intervalo, meu filho.
- O que é intervalo?
- Comercial.
- Vai demorar muito?
- Olhe fique quieto, quando der o comercial eu lhe digo, ok?
- Tá.
- Pronto. Já deu o comercial e eu não vi a última notícia.
- Posso perguntar agora, pai?
suspiro profundo
- Pode.
- O que é o apêndice?
- Apêndice?
- É. Eu ouvi a mamãe falar com a vizinha que o marido da Dona Rita foi operado de apêndice.
- Bem, meu filho. Eu não estou muito certo do que seja o apêndice.
- Onde fica?
- Bem, não tenho certeza, mas acho que é na barriga.
- Como se chama o operador de apêndice?
- Depois nós conversamos está bem? O jornal começou.
(Choro alto)
- Eu quero saber pra que serve o apêndice. Por que quando eu crescer quero ser um operador de apêndice.
- Agora já chega. Cale a boca e vá para seu quarto!
(Uma vozinha fina e chorosa vai sumindo pelo corredor)
- Pare de chorar! (grito da sala)
(choro aumenta)
(Horas depois. Ruído de batida na porta: Toc toc toc)
- Tem gente.
- Papai?
- O que é Paulinho?
- O senhor está mais calmo?
- Eu estou no banheiro.
- O senhor pode me dizer pra que serve o apêndice?
- Vá perguntar isso a sua mãe e me deixe terminar isso em paz.
(minutos depois)
- Papai?
- O que é Paulinho?
- Mamãe disse que tá assistindo a novela e pediu para o senhor me explicar sobre o apêndice.
- Vá procurar num livro.
- Posso procurar no seu escritório?
- Vá logo e me deixe ca...
(passos apressados pelo corredor)
(algumas horas depois)
- Boa noite Paulinho, descobriu o que queria?
- Mais ou menos, uma porção dos seus livros têm apêndice e serve pra dizer alguma coisa sobre o assunto que não tem nada haver com o assunto. Só não sei como um desses foi parar na barriga do marido da Dona Rita.
(Risada. O pai percebe o filho constrangido e cala-se)
- Filho, existe outro tipo de apêndice, que fica no corpo humano.
- Humano é o marido da Dona Rita?
- Não. Humano é a raça da gente. Do animal homem.
- A mamãe disse que tem homem que se comporta feito um animal, é por que tem apêndice?
- Não. Sua mãe é muito extremista, mas ela também é um animal.
- Minha mãe é educada ela não é um animal.
(Choro alto)
- Está bem, está bem, desculpe. O que quis dizer é que a raça humana, que somos todos nós, humanos, homens e mulheres, somos animais, animais racionais.
- Que nem a banda?
- Banda? Que banda?
- Racionais, eles parecem animais, eles têm apêndice?
- Têm. Esqueça essa história de animal, ok? Tem os homens e as mulheres que são chamados de seres humanos, eles, ou melhor, nós, temos apêndice. Entendeu?
- Acho que sim. O homem que for humano tem apêndice e é um animal.
- Esqueça o animal! (grito)
(choro)
- Desculpe, não quis gritar, se acalme. Esqueça tudo que a gente conversou.
- Até sobre a mamãe?
- Principalmente sobre a mamãe. Todos os homens e mulheres do mundo inteiro, inteirinho, têm apêndice.
- Eles também têm apêndice, papai?
- Eles quem?
- Os animais, eles têm apêndice?
- Eu não sei meu filho. Deixa os animais pra lá, sim?
- Pra que a gente têm apêndice?
- Já disse que não sei, porque você não procura em um livro de anatomia?
- O que é anatomia?
- São as partes do corpo hum... Do corpo da gente. Agora vá dormir.
- Puxa papai. O senhor é a pessoa mais sabida do universo, mesmo sendo um humano. Até amanhã.
(no outro dia)
- Papai.
- No intervalo do jornal, Paulinho.
(tempos depois)
- Pai, sabe o que eu descobri sobre o apêndice?
- (suspiro) o que foi que você descobriu?
- Que não serve para nada.
- Pra nada?
- É. Diz que quando nós éramos animais devia servir para alguma coisa. Acho que é por isso que o humano tem apêndice, ele não é um animal?
- Todos os homens e mulheres são humanos, meu filho. E por isso eles têm apêndice.
- Não entendi.
- Deixa pra lá, desisto.
- Pai, compra um desenho do corpo da gente pra mim, por favor?
- Pra quê?
- Pra eu ver onde fica e virar um operador de apêndice.
- Médico cirurgião.
- Hã?
- O operador chamasse médico cirurgião. Amanhã eu lhe compro esse desenho.
(dias mais tarde)
- Pai, posso caçar sapo lá no campinho?
- Pra que?
- Eu tô fazendo um trabalho.
- Do colégio?
- Não, minha pesquisa científica. Vou descobrir para que serve o apêndice, vou tirar o apêndice do sapo pra ver se ele deixa de ser animal.
- Com toda certeza. Vai virar defunto.
- Depois, vou tirar do homem e da mulher humano. Quer que eu faça a operação no senhor?
- NÃO!
- (choro) não precisa gritar comigo, eu só quero ser um médico cirurgião de apêndice.
- Tudo bem, tudo bem.
- Deixa eu tirar o seu apêndice, vai. Eu já aprendi onde fica e tudo. Mamãe diz que é um órgão que não serve pra nada, só faz inflamar e dar problema. Vai, papai. Eu treino no sapo antes e o senhor deixa de ser humano. Em nome da ciência.
(choro)
- O que foi meu filhinho? Por que você está chorando?
- Foi o papai, tomou o eu desenho do apêndice e o livro de anatomia. Disse que de agora em diante eu tenho que brincar de bola e que eu tenho que ser jogador de futebol quando eu crescer.
- Oh! Meu filhinho. Não ligue pra ele, seu pai é um animal.
Esse conto foi escrito por Malu Santiago para o Contos Iradex.
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