Giovani achava que estava preparado para aquilo, mas soube que ninguém nunca estará. Tamanha revolta, tinha um motivo.
Uma Nova Vida é um conto escrito por Amauri Vargas, ilustrado por JP Martins e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque na segunda parte dessa leitura.
Se quiser uma imersão durante a leitura, coloque os fones e ouça “Off the Road”, de Abel Korzeniowski.
Uma Nova Vida: A Morte
Giovani se preocupou quando levou o Samsung até a orelha para ouvir o telefone chamar, assim como nas três vezes anteriores: até cair na caixa postal. “Que porra de motivo ele teria pra simplesmente não atender a merda da ligação?”, questionou em um tom de voz quase inaudível. Não havia nada que pudesse servir de explicação.
Depois de mal tocar no almoço pegou o calhamaço de provas ainda em branco, impressas na secretaria do colégio e rumou de volta à sala, onde ficaria pelo menos até 18h. Ainda eram 14h.
Com o espaço vazio, acompanhado da preocupação, distribuiu as folhas nas carteiras, todas viradas para baixo, até que uma senhora amável e de voz extremamente grave, típica de fumantes crônicos, o interrompesse. A inspetora acabava de avisar que ele era requisitado na direção. “Os pais do Gustavo, aquele capeta da oitava série, reclamaram de novo das minhas cobranças. Quanto tempo mais eu vou ter que aguentar isso...”. Era, ao menos, o que ele achava. Não esperava, na realidade, as palavras com as quais a diretora do colégio explicaria que André se encontrava em coma no hospital.
Atirou tudo o que estava na mesa da superiora, fazendo-a recuar até a beira da janela – selada –, sem que ela pudesse pular dali, graças à instalação do ar-condicionado central, anos antes. “Se ele me atacar, estou perdida”, ela teve tempo de calcular. Ele gritou, um urro apenas, acompanhado de uma porrada na mesa grossa de nogueira. E depois desabou em um choro descompassado.
A imprensa deu capa. A tevê entrou ao vivo. Os canais a cabo exploravam as imagens, sem que ele tivesse condições de dizer tudo o que jamais desceria garganta abaixo.
A cena deplorável era repassada de novo, e de novo, e de novo.
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No início da noite recebeu uma visita do governador. O chefe da secretaria de comunicação do município e o próprio prefeito também foram até ele para dar a notícia.
Com a vida e a identidade do policial agressor devassada em horas seguidas de transmissão, ele não enxergou outra alternativa. Armado com uma barra de madeira, apara da última reforma que André e Giovani fizeram na casa em que moravam, estacionou o hatchback um quarteirão da porta da casa do policial e caminhou.
Desceu a lenha, literalmente, no único carro estacionado no local.
Dois bandos formaram-se: uma porção de policiais que estavam dentro da residência postaram-se na porta da casa e outro, formado pelos repórteres em vigília, observavam da calçada no outro lado da rua, exatamente a meio caminho da cena toda. Um dos policiais quis intervir, mas Ele não permitiu. Ele pediu que o deixassem quebrar, gritar, fazer o que quiser. Giovani arfava com os pulmões a cada golpe e depois de arregaçar o automóvel, olhou para o agressor que açoitou seu amor.
Os dois homens se encararam durante alguns segundos, um impressionante silêncio entre as mais de 30 pessoas que ali estavam. A tora, então, foi ao chão. Quem viu pôde sentir a tristeza do homem que resvalava ódio com o olhar. Quem não estava passando pôde ver tudo no plantão do telejornal. Alguns solidarizaram-se, em silencio. Outros apenas sentiam-se envergonhados pela cena dantesca.
Enquanto isso André tinha o corpo fichado, após perder a vida no hospital, apenas duas horas antes.
E seu agressor, não se engane, tinha nome. Era Daniel.
Esse conto foi escrito por Amauri Vargas e ilustrado por JP Martins para o Contos Iradex.
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