Destrinchando #3: Demolidor - A televisão sem medo | Iradex

Destrinchando #3: Demolidor - A televisão sem medo

No documentário Além do Cidadão Kane, o diretor Simon Hartog, querendo demonstrar o poder da toda poderosa Rede Globo no Brasil, afirmou que durante a noite a família brasileira se aglomerava em frente à tevê para assistir o Jornal Nacional e a novela das oito. Algumas décadas depois, falando sobre o novo espectador da era da internet, os criadores do Porta dos Fundos disseram que hoje as pessoas costumam assistir conteúdos sozinhas em frente ao computador, o que justificava o tom das piadas do canal do Youtube.

Eis que em 10 de abril de 2015 a Netflix derrama em seus servidores a temporada inteira de Demolidor, série que festeja o retorno dos direitos do Homem sem Medo à Marvel. Milhares de pessoas (muitas delas não consumidoras de quadrinhos, vale reforçar) se juntaram em frente às suas smart TVs (peça importante da transformação pela qual a televisão está passando) para maratonear a série. O comportamento que coloca as duas posições do início do texto lado a lado diz muito sobre o sucesso desta nova empreitada da Netflix e da Marvel.

MARVEL'S DAREDEVIL

Produção acima da média

Os fãs do Demolidor podemdemolidor_fm reclamar de qualquer coisa (inclusive da péssima adaptação para o cinema que o personagem recebeu em 2003), mas não podem falar das últimas sagas do herói nos quadrinhos. Não há nada muito marcante em suas primeiras histórias na década de 60, mas ao passar pelas mãos de Frank Miller (o autor mais importante para o personagem), o personagem sofreria uma mudança que seria complementada por Kevin Smith (em curta, mas marcante passagem), Brian Michael Bendis (num longo e memorável período), Jeph Loeb (com uma minissérie que ecoaria na série de tevê), Ed Brubaker (especialista em histórias urbanas) e Mark Waid (um pouco menos sério que os anteriores), mantendo elevado o padrão da sua revista mensal.

É de um amálgama das histórias desses roteiristas que surge a trama da série. Ligada ao Universo Cinematográfico da Marvel, mas anunciada com uma censura de 18 anos no Brasil, havia dúvida de até aonde a trama iria com relação à violência comum nas histórias do herói. A dúvida vai pelos ares no final do quarto episódio, que deve ter feito muito espectador perder a cabeça. Se em Agents of S.H.I.E.L.D. a Marvel tem sua série de ficção científica, Demolidor é sua experiência no gênero policial. Justamente para manter esse tom realista, pouco se explica sobre os "poderes" de Matt. Pouco se mostra também da forma como herói vê o mundo, um recurso sempre utilizado nas histórias do personagem em todas as mídias até então. Uma tentativa de manter os pés do espectador no chão para uma trama sem muitas firulas, complementada por lutas cruas (o que seriam dos filmes de ação atual sem o parkour?), poucos cortes e longas tomadas.

A forma como a série foi vendida pode enganar, mas é uma produção econômica. Em toda a divulgação se reforçou Demolidor como um produto da Marvel e da Netflix, mas lá nos créditos iniciais somos lembrados que o canal ABC, braço televisivo da Disney, está envolvido. Então pode se decepcionar quem espera uma série no padrão HBO. O primeiro episódio passa longe de ser um primor e espreme apressadamente em uma hora uma história que procurava deixar os personagens principais posicionados no tabuleiro do show. A pressa parece ser também um problema no final da série. Alguns diálogos poderiam ser menores e em parte das cenas de ação se percebe que as punhos do personagem principal passam longe dos rostos dos bandidos.

Mesmo assim, a série se mostra como uma das melhores adaptações já feitas dos quadrinhos para a televisão, a ponto de ser comparada a todo momento com Batman: o Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan. Os finais dos episódios quase sempre guardam os melhores momentos. Alguns episódios são memoráveis por completo, como "Nelson X Murdock", confirmando a relação entre Matt e Foggy como um dos pontos altos da série. Temos ainda uma atuação bipolar de Vincent D'Onofrio, que interpreta um Wilson Fisk com tantas camadas que se torce para ele em alguns momentos do programa. Uma gama de coadjuvantes de respeito, como Ben Urich, Madame Gao, Leland e Wesley, marca a boa direção de atores do programa.

Marvel/Netflix

Existem aqueles que torcem pela primeira topada da Marvel. Depois do inesperado sucesso do primeiro filme do Homem de Ferro, essa topada poderia ser com azarões como Guardiões da Galáxia e Agent Carter, que inverteram o jogo e se transformaram em grandes sucessos de crítica e público. Após Demolidor, a editora/estúdio sai com sua marca ainda mais valorizada. Diferente da sua Distinta Concorrente, uma boa direção criativa vem permitindo uma consolidação da Casa das Ideias dentro do segmento audiovisual. Ainda vem por aí Homem-Formiga, Inumanos e mais uma gama de personagens do segundo escalão. Mas provavelmente aqueles que torciam pela topada serão os primeiros a garantir seus ingressos na pré-estreia. Fica ainda um gosto amargo nos produtores de Arrow, paralelo mais próximo de Demolidor nos produtos da concorrente. O personagem da Marvel na tevê parece ser tudo aquilo que o Arqueiro Verde (ou o Batman?) poderia/gostaria de ser.

E se estamos falando de valorização de mercado, o que falar da Netflix? Suas produções originais acima da média vão estabelecendo o serviço como "realizador", indo além de ser apenas um "meio". O grande sucesso de crítica e público da série do Demolidor garantiu a confirmação de uma segunda temporada já em 2016, não programada inicialmente no calendário oficial Marvel/Netflix. Difícil prever como serão AKA Jessica Jones, Punho de Ferro, Luke Cage e Os Defensores, outras produções confirmadas. Uma gama de personagens urbanos ainda espera sua vez, entre eles Justiceiro e Cavaleiro da Lua. A expectativa já está alta.

"Nem gostei tanto assim dessa série..."

"Como assim não gostou do meu filme?"