FX e Marvel apresentam… Legion | Iradex

FX e Marvel apresentam… Legion

Enquanto os super-heróis dominam as telas de cinemas, mutantes desequilibrados tomam a TV. Em 2017, chegava ao canal americano FX a série Legion, criada pela mente alucinada de Noah Hawley, mesmo showrunner responsável pela série Fargo. Baseada (muito) vagamente nos quadrinhos dos X-Men, Legion conta a história de David Haller, mutante superpoderoso e também esquizofrênico, que sai da situação de refém de um telepata parasita até se tornar o Legião. Com apenas três temporadas, a série chegou ao fim nesta segunda, imortalizando uma narrativa e estética inigualáveis e performances espetaculares.

Ainda que Legion seja única entre as séries exibidas atualmente, é válido notar que ela é pesadamente influenciada pela Twin Peaks de David Lynch e possui elementos até mesmo de Star Trek. No meio do cinema, Stanley Kubrick é uma grande presença na obra de Hawley, sendo Laranja Mecânica a mais relevante na produção. O estilo de Wes Anderson também pode ser sentido, assim como a influência musical da banda Pink Floyd, com um de seus fundadores, inclusive, sendo homenageado no nome de uma das personagens, Syd Barrett. Estas são apenas algumas das referências feitas por Noah Hawley, que não hesita em homenagear o que veio antes dele, mas que ainda assim produz algo único.

Conhecer a história de Legion nos quadrinhos serve mais como uma busca por easter eggs do que um conhecimento necessário para a história que Hawley quer contar. Sim, David é o filho do Professor Xavier, e não, ele não é exatamente a pessoa mais confiável, sendo inimigo dos X-Men em várias ocasiões, e os ajudando em outras. Mas isso em pouco afeta a trama de Legion, que em vez de girar ao redor dos poderes dos mutantes e suas batalhas incessantes contra inúmeros vilões, decide contar a história de um mutante com problemas mentais, que não sabe diferenciar realidade de ilusão, temática essa que se expande até o fim de sua história.

O Demônio de Olhos Amarelos

No início da série somos apresentados a David (Dan Stevens), vimos como ele passou de uma criança que ouvia as estrelas falando, e tinha pesadelos com o desenho de um menino com raiva, para um adolescente quebrando vidros das janelas de um carro de polícia, até um adulto perturbado que tenta se matar, mas não consegue. Assim, David vai para uma instituição mental, e lá conhece Lenny (Aubrey Plaza), sua amiga louca, e Syd (Rachel Keller), a garota misteriosa por quem ele se apaixona.

No mundo lá fora, a Divisão 3 busca capturar os mutantes, e eliminar possíveis ameaças para a humanidade, enquanto a Summerland protege os mutantes e vê em David a chave para vencer essa guerra. David acredita que a única razão para coisas estranhas acontecerem com ele e ao seu redor é sua esquizofrenia, que produz alucinações. Mas quando ele é resgatado pelos mutantes da Summerland, ele descobre sua verdadeira natureza, e aprende que existe um segredo ainda mais sombrio dentro de si: um parasita que esteve com ele desde que ele era um bebê, escondido, esperando a melhor hora de se mostrar. 

Este monstro, que de início assume a forma de um demônio de olhos amarelos, manipula a mente de David, embaralha suas memórias, e confunde sua realidade, fazendo o mesmo com a percepção que o público tem da história. E é aqui que a série se destaca. Isso porque uma história contada por alguém vem junto com a miríade de sentimentos da própria pessoa, e portanto é passada a frente com a mesma conotação. E se o narrador dessa história não for alguém confiável?

A maior parte do que vemos na primeira temporada é a percepção de David sobre o que está acontecendo, e se o demônio de olhos amarelos manipula as memórias do nosso narrador, como saber o que é real ou não? A tentativa de decifrar a verdade sobre a origem de David é o que faz do início da série sua parte mais complicada e também a mais única.

A narrativa da série é intrinsecamente relacionada com sua estética. A iluminação é constantemente usada para representar como David se sente, e indicar qual parte de sua personalidade está se manifestando. Além disso, elementos de cenário ajudam a mostrar para o público partes da história que nem mesmo David está vendo, como quando o demônio de olhos amarelos está pairando, ou as mudanças nas estampas da camisa de David, indicando o caminho que o personagem está, sem perceber, tomando.

O design de som e a música da série não ficam para trás em questão de excelência. Elementos chave para a narrativa, o uso de efeitos sonoros junto à trilha indicam quando o monstro está próximo, ou quando o que está sendo mostrado está diretamente relacionado com a percepção de David de tal acontecimento. A trilha sonora de Jeff Russo reflete exatamente o caos da história, quando os temas não exibem uma lógica, mas apenas seguem os personagens em suas próprias jornadas. 

A edição da série é extremamente relevante, sendo usada por vezes para que Noah Hawley transforme algo que já está alucinante em algo mais absurdo (e divertido) ainda. Um exemplo disso é a cena do cinema mudo, que não foi filmada com tal intenção, mas que foi completamente transformada na mesa de edição.

Ao decifrar o enigma, entender por que Amahl Farouk, seu parasita e poderoso mutante, habitava em seu corpo, e finalmente se livrar dele, David está livre para ser quem ele realmente é. E quem seria ele?

Heróis e Vilões

Na segunda temporada, o fio principal da trama segue a busca pelo corpo de Amahl Farouk (Navid Negahban), que ao sair de David, se aloja em outra pessoa e agora busca pelo seu corpo verdadeiro, o que lhe permitirá alcançar o potencial máximo de seus poderes. Enquanto isso, Divisão 3 e Summerland se unem para que Farouk não alcance seu objetivo. Onde David se encaixa nisso tudo? Antes, ele seria a arma contra a Divisão 3, agora ele é a arma contra Farouk. Ou justamente a ferramenta necessária para que Farouk encontre o que deseja.

o mesmo tempo, David ainda tem de descobrir quem ele é. Ele não sabia diferenciar memória de ilusão, não sabia onde o parasita terminava e ele começava, e assim, o público tinha de viajar na confusão que era sua mente. Agora, ele não quer mostrar (nem aceitar) a verdade de quem ele é, e o que vemos é apenas o que David quer que vejamos. Novamente, e se o narrador dessa história não for alguém confiável?

A segunda temporada introduz cenas que explicam exclusivamente para o público (através da bela voz de Jon Hamm) conceitos como os de ilusão, moral, e consciência, como uma lição do que nós devemos ter em mente ao ver o desenrolar da história. Muitas vezes as cenas abordam o quanto uma ideia pode ser infecciosa (um pequeno aceno ao Inception de Nolan). Ao mesmo tempo, a trama apresenta distrações, para por vezes tirar a atenção do público, e também dos personagens, da verdade do que está acontecendo. Tudo isso ao mesmo tempo que dá sinais claros do perigo iminente. O verdadeiro perigo.

Todo o apelo estético da série continua, e a temporada já começa com uma batalha de dança (a alternativa que Hawley prefere usar no lugar de lutas) que te lembra de imediato o que é Legion. As cores continuam a serem elementos chaves na narrativa, e as músicas são ainda mais importantes. Hawley e Russo, inclusive, fizeram um álbum só com as versões da série de canções famosas, sendo a principal delas Behind Blue Eyes, de The Who, que faz parte de uma cena chave do último episódio.

Com três episódios a mais do que a primeira temporada, este meio pode se tornar um pouco arrastado, especialmente porque estes três episódios extras focam 1) no passado de Syd, 2) em uma nova Lenny (e um show de atuação de Aubrey Plaza), 3) e no multiverso de Davids, em que são mostradas várias possibilidades para o que a vida do protagonista poderia ser, um episódio escrito totalmente por Hawley. Apesar de funcionarem perfeitamente em suas singularidades, tais episódios acabam dando uma grande pausa na trama principal, e quando ela retorna, as coisas parecem ainda mais confusas. 

Ainda assim, a temporada conclui em um embate entre inimigos, amigos e várias partes de um mesmo ser. O questionamento final indaga: e se o herói na verdade for o vilão? 

O(s) Demônio(s) de Olhos Azuis

Em sua terceira e última temporada, Legion mergulha totalmente na vibe retrô futurista. Se antes, não conseguíamos definir em qual época a história se passava, com personagens usando roupas dos anos 60 e tecnologia avançada ao mesmo tempo, agora a psicodelia vai além. David é o objeto de um culto liderado por Lenny, e seus poderes estão no auge. Ele sabe exatamente quem é, mas não acha justo a percepção de seus antigos amigos de que seu verdadeiro eu pode ser perigoso demais para seu próprio bem. Assim, ele vai atrás de um mutante com o único poder que pode ajudá-lo nesse momento: viagem no tempo.

Como se não bastasse quase todas as franquias estarem lidando com viagem no tempo ultimamente, Legion também decide apresentar sua própria abordagem do elemento, que, evidentemente, é diferente do que costumamos ver. Switch (Lauren Tsai) é a mutante capaz de abrir portais através do tempo, e pode levar David aonde ele quer ir, a fim de salvar a si mesmo, e consequentemente, o mundo. Mas entre o presente e a época para quando eles querem ir, existe um corredor infestado de comedores de tempo, os demônios de olhos azuis.

David tem de enfrentar este novo obstáculo a fim de voltar para o momento em seu passado em que seu futuro foi ditado, em busca de mudá-lo, e mudar a si mesmo. Mas quem ele é? Um herói? Um vilão? Uma vítima? Só alguém doente? Alguém que precisa ser amado? O produto de todas suas relações? Do amor e do abandono de seus pais. Do veneno de seu parasita. Do encanto de Syd. Da devoção de Lenny. Quem ele foi não importa mais, apenas quem ele quer ser.

A terceira temporada termina se mantendo fiel a tudo que a série sempre representou. Acompanhar a jornada de David e poder chegar a sua conclusão é um presente agridoce, pois não queremos deixá-lo para trás, e ainda assim sabemos que sua história segue em frente.

Legion termina não cancelada, mas finalizada, o que nos dias de hoje é uma grande vitória. A série nunca alcançou um status de fama alto o suficiente para ser a conversa da semana em sua época de exibição. A produção, no entanto, prospera por conta de Noah Hawley, a mente alucinada que juntou tantas inspirações de anos de cultura pop (e outras nem tão pop assim) em uma série disposta a deixar de lado convenções e brincar com tudo que uma narrativa audiovisual pode oferecer. Legion deixará saudades, mas isso não é o fim. É apenas o começo.