No fim, estamos sós, escrevendo memórias em uma folha amarelada para não perder a sanidade.
Vozes é um conto escrito por Cleiton Xavier, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
Vozes
A luz do sol entrou pelo quarto. Trouxe um pouco de luz, para o que parecia ser uma interminável escuridão. Eu fitei-a, como se tentasse lembrar quem era ou o que era aquilo.
Ouvia vozes de todos os quartos, ouvia todo tipo de coisa, desde planos de fugas a vinganças planejadas.
Outro dia, ouvi a voz de um senhor do quarto ao lado, estava ouvindo o jogo do seu time por um rádio de pilha, resmungando e gritando quando saía gol. Ele dividia o quarto com mais vinte pessoas. Semana passada teve visita, três caras com quem eu divido o quarto tiveram alguém com quem conversar. Já eu, bom, eu geralmente não recebo visitas, mas isso não é raro, na verdade muitos não recebem. O que de fato é ruim, afinal essa é a única chance que muitos têm de saber como tá o mundo fora dali.
Hoje completa um mês, trinta dias.. ou será trinta e um? Só sei que já faz um tempo que o doutor veio aqui da última vez, na última visita ele falou muitas palavras difíceis, mas pela cara dele, deu pra perceber que não eram boas notícias. Ele costumava vir quase toda semana no começo, mas agora mal o vejo.
O tempo deixa qualquer um maluco aqui dentro, um cara do andar de cima se enforcou com o lençol, demoraram duas semanas para retirar o corpo dele. Ele só tinha mais dez meses.
Sobreviver por aqui nunca foi fácil, ainda mais quando descobriram que alguns morreram porque os homens de farda receberam ordens. As coisas começaram a piorar, alguns fugiram, outros morreram e alguns foram liberados. Nessa época, o doutor até tentou conseguir uma transferência, mas não rolou.
Quando eu cheguei aqui nesse quarto, tinha um cara, ele já estava aqui antes de todos. Ele me ensinou algumas coisas. A primeira e mais importante: ficar longe de brigas. Ele dizia que não havia porque brigar, afinal se eu ficasse na minha, sairia logo. A segunda era não seguir as vozes, elas seriam tentadoras, mas seriam a minha ruína. A terceira foi a mais inusitada. Ele me disse para escrever tudo, tudo o que eu vivesse naquele lugar, tudo pelo o que eu passasse. No começo eu não entendi, mas com o passar dos anos eu pude compreender o que ele queria dizer. Escrevendo tudo o que acontecia, além de me manter longe das vozes, eu ficaria mais são.
Esse senhor nunca falou seu nome, já fazem três anos que ele se foi. Para mim ainda resta: 1 ano, 3 meses e uns dias.
São Paulo. 03 de outubro de 1992.
Esse conto foi escrito por Cleiton Xavier para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.