As Manhas e as Manhãs | Iradex

As Manhas e as Manhãs

A água borbulhante escorre pelo pó, o aroma preenche o lar. Só com a caneca cheia que o dia começa a brilhar.

As Manhas e as Manhãs é um conto escrito por Gusta Mociaro e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


As Manhas e as Manhãs

Após poucas semanas de descanso, algumas pipas perdidas no céu e muitas horas de desenhos animados na TV, o despertador soou incessantemente e indesejavelmente anunciando o final das férias. Indesejável, por sinal, era a palavra que melhor poderia definir aquele momento.

Os dias de tranquilidade oferecem a escassez de limites, mas cobram um preço alto quando a necessidade de retomar as rotinas esbarra no horário desajustado. Enquanto a única obrigação da vida era o estudo, meus momentos de relaxamento semestrais pareciam infinitos e a gana fazia com que eu os aproveitasse até o último minuto. Naquele ano, aproveitei até o minuto trinta e quatro da terceira hora da última noite. Dormi, e em um piscar de olhos (pelo menos foi o que pareceu) o criado-mudo gritou.

A saliva seca deixava a estranha sensação de pele quebradiça em meu rosto.

- Como consegui babar tanto em um período tão curto de tempo? - Nunca saberei responder.

Os olhos se recusavam a abrir. Naquele horário, nem o sol tinha despertado. O silêncio do amanhecer só desaparecia por breves instantes enquanto o Linha 12 passava pela rua chacoalhando minha janela, ou quando meu avô virava a enorme página do jornal enquanto esperava a água do café ferver.

Teimoso, me afundei no edredom por mais alguns segundos. Pelo menos até os primeiros raios de luz do dia invadirem meu quarto junto com o cheiro do café coado. Perdi. Havia chegado a hora de reencontrar Dona Cristina e descobrir qual povo antigo seria sua nova vítima.

Dona Cristina era especialista em transformar histórias épicas em cantigas de ninar. As mais sanguinolentas batalhas e conquistas de territórios saiam de sua boca no mesmo tom de uma solene leitura das atas do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Mauá.

Como desgraça pouca é bobagem, já era quase uma tradição: nos 3 anos anteriores, Dona Cristina ocupou os primeiros horários das segundas-feiras na minha turma. Não deveria ser diferente dessa vez.

Finalmente levantei e me arrastei até a cozinha. Apenas um gole profundo no café amargo do meu avô seria capaz de me dar uma dose de energia.

Da sala, vovô pôde me ouvir estrambelhado derrubando um pires enquanto tentava pegar a maior xícara do armário.

Da cozinha, pude ouvir o som da TV através das paredes. A viola ponteada antecedeu o "bom dia" dito pelo apresentador.

- Hoje, no Globo Rural, viajaremos até o interior de Minas Ge...

- AHHHHHHHHHHHHHHH, AINDA É DOMIIIIINGOOOOOO!

Vovô pulou do sofá assustado e derramou o café na camisa.

Eu pulei de volta para o conforto do edredom.


Esse conto foi escrito por Gusta Mociaro para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gusta Mociaro é front-end developer, viciado em internet.

Escritor? Nem de longe. Mas um grande fã de boas histórias.

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