Silvaneide | Iradex

Silvaneide

Na escuridão das ruas vazias, se escondem os seus maiores pesadelos.

Silvaneide é um conto escrito por Conrado de Lima e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


Silvaneide

Quem dera a moda não tivesse saído das avenidas de Nova Iorque, onde há mais esquisitões com olhos de laser, super força ou agilidade desumana por bairro que quarteirões livres de criminosos. No caso norte-americano o script já era conhecido por todos; duas ou três vezes por ano, quem sabe quatro, algum psicopata anunciava o fim da cidade e, horas depois, era detido por algum grupo de super-humanos. No caso brasileiro, como São Paulo não havia aderido a proposta das ligas heroicas, seus benfeitores ainda insistiam nas vigílias solitárias ao longo das ruelas e becos da maior cidade da América Latina em nome da Justiça.

O Aniquilador era o mais famoso dos heróis. Dizem que vestia um casaco preto, carregava uma pistola na perna esquerda, usava aos montes adagas para combate direto e nunca, em hipótese alguma, errava um tiro sequer. Quase um espião segundo os moldes, mais uma vez, nova-iorquinos. Há quem diga que também usava óculos escuro, contudo duvido que alguém use tal acessório para vagar no breu duma cidade como São Paulo, onde sobra carro e falta luz. O fato é que ele já havia levado muitos aos tribunais; Dr. Macabro – um cientista maluco que tentou explodir a prefeitura –, o Cobrador de Milagres – curandeiro que transfere a juventude de inocentes para criminosos por dinheiro – e até mesmo Faísca, famosa por ser imbatível em combate – uma vítima dum acidente químico que lhe deu o poder de controlar a eletricidade.

Era o homem do momento, assim diziam. Tanto era que, dia após dia, suas entrevistas rendiam as maiores audiências nas rádios ao longo da metrópole.

– Como se sente prendendo mais uma gangue de criminosos, Aniquilador? – Pergunta o repórter com o gravador próximo à boca do herói. Era a terceira apreensão de bandidos da semana.

Enquanto isso, ao som da transmissão ao vivo, uma jovem universitária aguardava o ônibus numa parada do outro lado da cidade. Sorria sozinha, pois adorava seu radinho a pilha e as notícias ainda mais.

– Ainda insatisfeito – prosseguiu o Aniquilador. – Eu só vou descansar quando colocar as mãos na Srta. K e no Pistola. Sei que são um perigo ambulante e que esta cidade só estará segura quando eu colocar esses dois marginais atrás das grades. Da última vez quase capturei o Pistola, sorte que garanto que não terá na próxima vez que nos encontrarmos.

– E as críticas do Governo Federal a sua atuação...

Desligou o rádio. Começaria a parte que não lhe agradava; as polêmicas envolvendo política.

A rua estava deserta, iluminada apenas por dois ou três postes no sentido do Centro. Embora sozinha, já estava acostumada a sair tarde do trabalho e ter que se sujeitar ao risco de ser assaltada. Porém nunca foi, pois sempre seguia as duas regras que lhe mantiveram viva e sã até então; a primeira era que deveria fazer o mínimo de barulho possível e a outra era tentar se camuflar nas sombras. Seguia o plano como de praxe até o instante que semicerrou os olhos e enxergou alguém a quatro ou cinco quarteirões, no fim da rua.

Guardou o rádio, a bíblia e o passe-estudantil e respirou fundo; era o fim de um dia cansativo, não tinha forças para nada mais. Depois de guardar os pertences caminhou até o meio-fio e, pela segunda vez, semicerrou os olhos tentando encontrar algum ônibus ou táxi. Sem sucesso – nada transitava naquele asfalto frio. Já se preocupava aos montes quando percebeu que não havia mais ninguém nas proximidades além dela mesma – o tal indivíduo no final da rua desapareceu feito fumaça.
Tranquilizou-se, ao menos até se lembrar que esperava o ônibus há quase duas horas.

– Que Deus me defenda – sussurrou enquanto se escondia mais ainda atrás dum poste.

Como não tinha outra opção, esperaria com a paciência de um monge pelo tempo que fosse preciso. Todavia sempre, seja mais cedo ou mais tarde, nos cansamos de esperar. Ela não poderia ser diferente, afinal quando cansou de aguardar de pé, se virou para se acomodar no banco quando e deixou escapar um tremelique sagaz, daqueles típicos de filme de terror. No banco um homem de preto, quase sorrindo.

– Boa noite – ele balbuciou.

Não houve resposta. Estava perdida, na boca do túmulo, afinal o único homem com aquela aparência que gostaria que estivesse por perto estava do outro lado da cidade prendendo bandidos.

– Vou repetir; boa noite.

Era a segunda vez que o ignorava. Algo que, querendo ou não, ficou mais complicado quando ele caminhou na direção da jovem garota de braços abertos e mostrando os dentes amarelos.

– Calma, não tenha medo – pede ao ver o tremor nas pernas da universitária. Ela, que em nada conseguia esconder seu desconforto, mirava o asfalto rachado da rua.

– Não tenho dinheiro... – Conseguiu cuspir as palavras.

– Não quero um tostão sequer, minha querida – informa pondo a mão no seu ombro. – Entretanto, acredito que possa me fazer um pequeno favorzinho. O que acha?
Pela terceira vez não houve resposta.

– Não banque a muda, pois sei que você tem uma ótima dicção, meu bem.

– O que você quer? – Pôde indagar meio a soluços. Seus olhos verdes lacrimejavam.

– Primeiro quero saber o seu nome, se for possível.

– Silvaneide.

– Sério? – Perguntou ao som dum riso contido. – Que seja então, Silvaneide. Agora me pergunte novamente o que quero, gostei da sua voz.

A jovem prosseguia estática quando os dedos do homem de preto percorreram sua cintura. Pensou em correr e gritar por socorro ao longo da rua, mas não iria muito longe.

– O que você quer? – Sussurrou sentindo a mão do estranho percorrendo sua coluna.

– Antes de tudo, gostaria de libertar o Dr. Macabro e o Cobrador de Milagres da cadeia – indagou o homem de preto mexendo no casaco dela. – Eles me devem bastante desde o último roubo, sabe? Aqueles onde o Aniquilador os pegou. Não que eu me importe com eles, nem que eu negue minha culpa no fracasso da missão, entretanto não sou do tipo que sai perdendo nos acordos porque alguém não deu conta dum herói como o Aniquilador. Claro que ele é bem difícil de matar, eu mesmo já tentei, mas nada que justifique meu prejuízo. Tá me entendendo?

– Eu não sei... não sei matar o Aniquilador – gaguejou.

– Claro que não, Silvaneide. Seria bem estranho se soubesse – conclui acariciando seu rosto. Mesmo no escuro pôde vislumbrar os olhos tão verdes quanto as esmeraldas do seu primeiro roubo.

Ao longe, nada de ônibus ou alguma alma caridosa.

– Também queria encontrar a Srta. K para fazermos negócio, sabe? Já que tocou no assunto, eu e ela poderíamos jogar o Aniquilador a sete palmos abaixo da terra em nome dos negócios. Entretanto, eu adoro essa palavra, essa ladra é quase impossível de encontrar. O tipo de criminoso que só aparece quando necessário, quando seu pescoço ou seus interesses estão sendo vendidos ou trocados numa mesa de reunião cheia de chefões do crime. E essas visitas sempre acabam em morte, é óbvio.

A luz do poste mais próximo piscou.

– Dizem que ela só sai à noite, e que atua deste bairro até o vizinho, seguindo pelo Centro. Também comentam que não usa facas, metralhadoras ou qualquer outro apetrecho, até porque ela não suja suas mãos com nenhuma arma. Usa apenas as mãos, combate mano a mano. Como se não bastasse essa conversinha mal inventada, ouvi certa vez que tem os olhos vermelhos e uma dupla personalidade; ora o diabo, ora uma santa. A grande questão é: como saber se o que dizem é verdade, Silvaneide?

O silêncio reinou por alguns segundos.

– Não foi uma pergunta retórica, minha querida.

– Eu... eu... – Tentava falar algo, mas a garganta falhava.

– Certo, vamos tentar uma questão mais fácil. Quem eu sou? – Sussurrou enquanto dava a volta na jovem indefesa e trêmula, imersa num medo incontido.

– O Pistola, eu acho – as palavras saltaram da boca. Estava apavorada.

– Bingo! – Comemorou o criminoso. – Agora, já que entende do assunto, me diga; o que falam de mim pelas ruas? Sabe, no meu ramo, é nossa fama que define o quão somos competentes e o quão bem pagos deveremos ser em nome dum serviço. É quase como ser artista; você precisa dum público, de pessoas dispostas a falarem sobre seus feitos e conquistas.

– Eu não converso com pessoas... só ouço rádio.

– Que assim seja então; o que falam de mim nas rádios?

– Que... – Arfava meio a soluços. – Que você é muito perigoso, tanto que matou sete outros criminosos porque eles pediram Coca-Cola sendo que você prefere Guaraná.

– Bingo novamente, Silvaneide! – Comemorou com um sorriso de orelha a orelha. – Agora, voltemos ao começo da conversa, e me permita que eu inverta a pergunta a você. Quero uma resposta sincera, sabe? Nada de palavras genéricas ou algo que não condiz com meus interesses. Não importa o que dirá, só que seja sincera. O que você pode me dar que eu queira?

Suspirou. Ele gostava daquele joguinho, fazia-lhe se sentir poderoso.

– Nada.

– Nada?

– Nada – confirmou sem conter o choro.

– Entretanto, viu? Eu não menti quando disse que adoro essa palavra – e riu. – Enfim, tem algo que eu queira, e muito por sinal – sussurra a segurando forte pelos ombros e, sem qualquer hesitação, apalpa os seios da jovem.

Ali, naquela rua vazia, seu mártir se inicia.

Num piscar de olhos o verde deu lugar ao vermelho, o vento soou mais lento e a primeira cotovelada foi deferida. Depois de soltá-la, a jovem arremessou a mochila, saltou e o chutou em pleno ar – porém, o golpe foi bloqueado. Poucos instantes foram necessários para que desferisse incontáveis socos na direção do seu algoz que, por sua vez, bloqueava todos por reflexo embora seus treinados olhos não acompanhassem seus movimentos – quem dera a iluminação ajudasse.

Percebendo a chuva de chutes, socos e estranhas posições de dedos vindo na sua direção, Pistola tentou, sem sucesso por quatro ou cinco vezes, sacar a arma que lhe dava o nome de guerra para finalizar a luta. Decidiu partir para o ataque e conseguiu ganhar dois metros de distância com quatro ou cinco chutes que derrubariam um boi. Sacou a arma com uma destreza incomum e já mirava o crânio da adversária quando vislumbrou os olhos vermelhos além do semblante desafiador e determinado. Não era a mesma pessoa, não mesmo.

– Bom, para alguém tão lento – foi a mulher que falou, agora com tom e timbre diferentes.

– Me dê me um bom motivo para não estourar seus miolos, agora! – Berrou Pistola. Daquela distância e ângulo não erraria uma mosca, tampouco uma cabeça.

– Não é o primeiro homem que perde os bons modos e, segundos depois, de cavaleiro vira rato quando estou por perto – balbuciou enquanto ajeitava os cabelos loiros e arremessava no banco do ponto de ônibus a jaqueta – e, assim como os outros, não te culpo nem julgo. Até porque, convenhamos, dois minutos de combate físico e você vai implorar para viver, como um animal encurralado sabendo que vai ser o prato principal do almoço no dia seguinte. Eu conheço seu tipo Pistola, conheço de cor e nos mínimos detalhes, e é justamente o que mais detesto e abomino.

– Eu sabia que encontraria você aqui, só não sabia que estaria disfarçada, Srta. K – balbuciou ofegante enquanto baixava a arma. Sua busca chegava ao fim.

– Entretanto, eu não estava.

Num instante desferiu um soco na garganta do Pistola, acertou-lhe o estômago e segurou seu pulso quando tentou acertá-la por duas vezes sem sucesso. Um dos tiros acertou uma parede e o outra a lâmpada do poste mais próxima, aquela que piscava. Desferiu dois ou três golpes com nomes complicadíssimos, misto de dois ou três estilos de luta diferentes, e o arremessou no meio da rua. Como chegou tão rápido até ele? Bem, o corpo dela era uma máquina, do tipo que não falha nem erra.

Ela, Srta. K, avançou pela segunda vez com os olhos em chamas e dentes trincados. Foi uma questão de milésimos; acertou dois socos nas suas costelas, desviou dum soco e sentiu os dedos do homem agarrem seu cabelo. Num piscar de olhos se viu erguida pelo braço direito do criminoso, sendo sufocada por aqueles dedos rígidos feito pedra. Sem alcançar o chão, sem respirar, já via o fim quando tentou socar seu braço e rosto, ambos os golpes sem sucesso. Ele quase sorria, como se a vitória estivesse no papo.

E estaria, se no último momento a Srta. K não acertasse com seus finos dedos alguns nervos e tendões deslocando seus músculos. Depois socou seu estômago, clavícula e queixo.

Pistola recuou aos tropeços, quase caindo.

– Quem você acha que é? – Berrou erguendo a arma com a mão direita e apalpando uma das costelas quebradas com a outra. Sangrava pela boca, por um dos ouvidos e ofegava como um cachorro após uma briga de rua.

– Não sei, me diga você. Afinal, são nossas famas que nos definem.

Vendo que ela caminhava na sua direção atirou, mas o braço desviou num espasmo muscular. Tentou recuar e atirar com a outra mão, mas a perna esquerda parecia paralisada. Caiu, se arrastou e aos poucos percebeu que seu corpo não o obedecia, seus nervos não estavam enviando as informações corretas aos músculos.

Recordou os movimentos dos dedos da Srta. K durante toda a luta – do primeiro ao último golpe – e gemeu lembrando que viu no mercado negro algo sobre uma técnica de bloqueio de chacras, que nada prática inutilizada o corpo do oponente. Esperava pela morte de olhos esbugalhados.

– O acaso... é um deus e um diabo ao mesmo tempo – Srta. K citou Machado de Assis caminhando na sua direção, com a calma de quem já havia vencido.

Em seguida, sem sequer analisar as propostas que aqueles olhos trêmulos ofereciam ou o que poderia ganhar caso poupasse aquela vida oportunista, quebrou seu pescoço com suas pequenas mãos.

Não julgava triste que um parceiro de jornada estivesse partindo. Afinal aprendeu desde cedo com seu pai militar, mãe fisioterapeuta e avô político que duas condutas são obrigatórias na vida de alguém como ela; erguer as mãos aos céus e agradecer quando o cavalo é dado e os dentes são saudáveis assim como tirar do páreo, sempre que possível, os concorrentes do mundo do crime.

Foi rápida escondendo o corpo num local que a polícia encontrasse no dia seguinte, porém minuciosa ao escrever o nome “Srta. K” no abdome do homem com uma das facas que encontrou na jaqueta. Como seus olhos ainda estavam em chamas, saqueou dois anéis que o homem levava consigo para guardar com souvenir, furto que nada lhe incomodou quando voltou a esbanjar os lindos olhos de esmeraldas. Era claro e evidente que, ora ou outra, aquele homem faria falta na guerra que o crime travava contra o Aniquilador, contudo há certas atitudes que seus ideais não toleravam. Apesar da vida que levava, sempre carregava consigo crenças inabaláveis.

Eram duas e trinta e dois da madrugada quando subiu no ônibus, abriu a bíblia e pôde pedir perdão ao teto do ônibus – digo, olhando para ele – por seus pecados.


Esse conto foi escrito por Conrado de Lima para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Conrado de Lima é escritor por vontade, pseudocinéfilo e estudante de medicina nas horas vagas. Ama Sandy, Rick and Morty e acredita fielmente que sorteio é a melhor forma de selecionar as pessoas que entram no Congresso Nacional.
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