Antes de mais nada, um aviso: esta crítica é incrivelmente pessoal. Não será como as outras que eu escrevi aqui, não adotarei um tom de humor ou piadinhas relativamente infames como de costume, então quem por ventura já leu minhas outras críticas, não se espante. Quem nunca leu nada que eu escrevi e veio parar aqui, talvez esse (não) seja o texto que melhor reflete meu tipo de escrita. De qualquer maneira, aos que me conhecem ou não: voltem sempre.
Li Fome há exatos dois meses e já nas primeiras páginas sabia que era um livro sobre o qual eu gostaria de escrever. Adiei esta crítica o quanto pude, pois também sabia que não teria como escrevê-la sem me expor.
Fome é uma autobiografia escrita pela professora, editora e autora de Má Feminista, Roxane Gay. Um relato difícil, cru e absurdamente honesto de uma vida marcada por dor e distúrbios alimentares. Roxane foi vítima de abuso sexual aos 12 anos de idade e para lidar com o trauma ela recorreu à comida. Utilizando seu próprio corpo como escudo, ela começou a comer compulsivamente numa tentativa de afastar a atenção das pessoas ao seu redor e assim se proteger. Logo no início somos informados que o livro não se trata de uma história de sucesso e que não veremos fotos de antes e depois de sua autora mostrando aos leitores que tudo é uma questão de motivação. Não é um livro sobre superação e nem sobre perda de peso. É, nas palavras de Roxane, apenas uma história verdadeira.
Criada em uma família feliz e amorosa, a autora explica que sua vida é dividida em duas – antes do estupro e depois do estupro. Ela nos conta, da maneira mais direta possível, que sua obstinação por comida foi a forma que encontrou de tornar seu corpo repulsivo a ponto de afastar todos os homens. Roxane entende que, para a sociedade, mulheres tem que ser pequenas, delicadas, não devem ocupar espaço e se esse espaço for ocupado, precisamos garantir que o objeto feminino que o ocupa seja uma visão agradável para os homens. Ser feia, para uma mulher, é um pecado mortal, um símbolo de que aquela mulher falhou justamente naquilo que a sociedade esperava que ela tivesse sucesso.
Roxane pontua diversas questões que para nós mulheres são relativamente óbvias, mas que são explicitadas justamente para que possamos refletir sobre – e resistir à - toda a pressão que nos é imposta. Foi muito difícil ler Fome e ver por escrito, de maneira tão mordaz, situações que me são tão familiares. Os eternos desafios para perder peso, a luta constante para lembrar a si mesma que seu valor como pessoa nada tem a ver com o número na balança, os surtos de excessos onde você come até vomitar ou passa dias, às vezes semanas, comendo só alface e tomando água, ou o armário com as roupas que você usa e o outro com as roupas que você gostaria de usar. Roxane e eu, teoricamente, não temos muito em comum. A própria deixa bem claro que sim, ainda que mulheres como eu experimentem alguns desconfortos e chateações por nos percebemos gordas, só mulheres inquestionavelmente gordas como ela entendem o que é viver a vida rodeada por pessoas que fingem ter seu bem-estar em mente, mas no fundo apenas querem que você ocupe menos espaço.
Ainda que no IMC (índice de massa corporal) eu esteja, segundo minha nutricionista, à dois pontos de ser classificada como obesa, graças a inúmeros truques, que variam desde o corte da roupa até cintas compressoras extremamente desconfortáveis, consigo disfarçar uma parte da gordura extra. Consigo ser vista como “cheinha” ou “um pouco acima do peso”, embora na minha área (artes cênicas) já sou facilmente encaixada no perfil de gorda-alternativa-melhor-amiga-da-mocinha (mocinha esta que quase sempre veste 36). Com sorte até acho uma ou outra calça jeans 46 nas lojas de departamento e consigo comprar várias peças fora da sessão plus-size, algo que Roxane não consegue. Ela é uma mulher alta, suas roupas precisam ser ajustadas ou feitas sob medida e seu peso chegou em três dígitos. Na teoria, nós somos bem diferentes, mas na prática, Roxane e eu sabemos exatamente o que é odiar seu próprio corpo e buscar na validação de outras pessoas algum conforto diante deste corpo que não consideramos digno. E assim como nós, tantas outras mulheres dos mais diversos tipos físicos também sabem como é esse ódio, pois desde pequenas somos condicionadas a nutrir uma eterna insatisfação com nossa aparência. Não é por acaso que a indústria da beleza encontra grande parte do seu lucro no público feminino.
Fome chegou até mim num momento crucial. Frustrada com meu peso e me sentindo perigosamente à mercê de retomar os hábitos que tinha quando meu transtorno alimentar estava no ápice, este livro foi como oxigênio em pulmões que se afogavam. É um dos poucos livros que eu recomendaria para qualquer tipo de leitor. É o tipo de livro que, por inúmeras razões, também é um exercício de empatia. Em determinado trecho, Roxane fala abertamente sobre a forma como odeia seu corpo e odeia decepcionar tantas mulheres por não conseguir amá-lo, não importa seu tamanho. No fundo, Roxane, eu e inúmeras mulheres buscamos isso – um tipo de amor próprio que resista a toda e qualquer hostilidade que possa ser jogada no nosso caminho, um amor que possamos compartilhar desmedidamente com as mulheres em nossas vidas, incentivando-as a se amarem cada vez mais também. Quero crer que muitas de nós já encontraram e estão encontrando esse amor.
Termino esta crítica com uma frase muito simples, cujo autor(a) desconheço, mas que vocês provavelmente já leram (visto que ela é usada à exaustão nas redes sociais). É uma frase que se aplica perfeitamente ao (muito) que senti lendo Fome:
Todas as pessoas que você conhece estão lutando uma batalha da qual você não sabe nada a respeito. Seja gentil. Sempre.
Ana Negreiros é atriz, leitora, mãe de dois gatos, louca por tatuagens e viciada em Red Bull em recuperação. Ela acredita em lobisomens.