Cartas do Mundo: Leeds | Iradex

Cartas do Mundo: Leeds

Kaio e Gabriel,

A camiseta do David Bowie que ganhei do Iradex me deu a ideia da carta que eu iria mandar para vocês. A metáfora perfeita. Além disto, esta viagem foi feita poucos meses depois que eu conheci os podcasts e o site e eu compartilhei muita coisa lá no Bando de Ruma, numa época que o Facebook ainda estava muito ativo e galinhas e o Gabs Estrela dominavam as paradas de sucesso.

O GPS holandês e o fato de dirigir na “mão contraria” não estavam ajudando, mas no caminho para Canterbury tínhamos programado parar no castelo de Leeds. Essa banalidade de encontrar castelos pelo meio dos caminhos é uma coisa que sempre me deixa abestada na Europa. Aquelas construções medievais, muitas vezes cheias de puxadinhos construídos ao longo dos séculos por nobres famílias, para mim sempre parecem um cenário de ficção. Para os locais é só mais um castelo, mas, mesmo para os bretões, Leeds é especial. Há algum tempo nas mãos do governo, a propriedade é enorme e a construção totalmente preservada com salas e quartos mobiliados como nas ilustrações de um livro de história.

Como eu não creio em vidas passadas, presumo que meu fascínio e reconhecimento de certas paisagens e lugares nas Ilhas só possa vir dos livros que li e das musicas que ouvi. Não me lembro exatamente do primeiro livro, mas certamente Agatha foi minha companheira de infância e As Brumas de Avalon me marcou demais. Dai pra frente, por escolha ou coincidência, autores ingleses, escoceses, galeses e irlandeses sempre me acompanham e por conta disto quando viajo pra lá vejo personagens por tudo quanto é canto. Muitas vezes me sinto em casa em locais que nunca estive. E também até onde eu consigo acessar meus arquivos de memória, eu ouço músicas inglesas. E como os livros começaram pela Agatha, as musicas começaram pelos Beatles.

E foi assim, com a cabeça cheia de lembranças vividas através de textos e sons que eu fui conhecer mais um castelo na terra da rainha.

Depois de algumas horas caminhando por corredores de pedra e escadarias em caracol fui para o tradicional passeio pelos jardins, uma obsessão dos ingleses. Uma apresentação de falcoaria foi anunciada e já estava quase na hora. Fui apressando o passo para não perder o show, mas subitamente parei boquiaberta. Nunca tinha me deparado com nada assim. A esquerda do caminho que me separava das aves de rapina estava um labirinto.

Eu nem hesitei. Entrei imediatamente nos corredores de árvores altas e comecei a andar rapidamente escolhendo aleatoriamente para que lado virar. Pensei (ou nem isso) que era só uma voltinha antes do show. Logo chegaria ao centro, onde uma estrutura alta de pedras escondia uma gruta com a trilha rumo à liberdade. Erro meu.

Depois de alguns minutos vi que não seria tão fácil sair dali e comecei a tentar fazer um caminho que me parecesse ter alguma lógica. Em vão. Com o passar do tempo, comecei a reparar em algumas coisas. A primeira é que não tinha a menor ideia onde eu estava. As árvores altas só permitiam a visão do céu e o que eu via é que ele ia escurecendo. Inverno. Quase cinco horas da tarde. Estava prestes a anoitecer. Eu já estava andando há uns 45 minutos. Comecei a pensar no que aconteceria se ficasse por ali. Haveria resgate? Alguém conta os visitantes deste jardim? Não tinha visto nenhum guarda, segurança ou mesmo alguém que parecesse trabalhar por ali. Só vi um labirinto e entrei. Depois de dar de cara com dezenas de no way outs, ouvi uma voz que me fez soltar a respiração que não percebi que tinha prendido. Um casal, que conseguiu chegar ao centro, subiu no morro de pedras e, como dali tinha a visão do labirinto e daqueles que ele tinha engolido, começaram a gritar instruções para os perdidos. Assim, eu e um pequeno grupo, após nos encontrarmos numa das intercessões, conseguimos chegar à gruta. Alivio. Se fôssemos todos latinos certamente teríamos nos abraçado, mas o que teve foi um thanks guys e acenos de cabeça. Trilhamos a passagem subterrânea e ganhamos a liberdade.

Tinha escurecido, o show já tinha acabado há muito tempo e fomos embora.

Claro que não pensei nisto na hora, mas como já falei, Labirinto é uma metáfora perfeita.

Penso que não é incomum eu me meter em labirintos desviando de um caminho pré-programado. Menos incomum ainda é ir fazendo escolhas aleatórias até me encontrar numa situação sem saída. E muitas vezes para reencontrar minha liberdade eu precisei de alguém me ajudando a ver pra que lado virar. O peso das escolhas.

Também penso na minha falta de hesitação em entrar num locar desconhecido. Tem gente que jamais entraria naquele labirinto. Outros só entrariam com o novelo de Ariadne. Uns entrariam confiantes no seu ajustado senso de direção e prontos para derrotar o Minotauro. Os birutas como eu se perderiam. E se achariam. Com ou sem ajuda. Ou ficariam lá para sempre vendo Icaro cair dos céus.

Acho que o Labirinto da realidade muda de formato a cada escolha de caminho. Portanto, nem sempre aprender o caminho pela primeira vez levará ao centro de novo. Mas o que me intriga nem são as escolhas. O que mais me intriga é a vontade de voltar.


Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti sobre suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.