RE: Cartas do Mundo: Japão | Iradex

RE: Cartas do Mundo: Japão

Adah,

quando estivemos em São Paulo, você me pediu uma carta do Japão, e ela chegou. Eu poderia escrever linhas e linhas de motivos buscando lhe convencer a viajar para a antípoda de onde você vive, atravessar a cortina da realidade e ir pra um mundo completamente diferente e novo. Poderia escrever laudas sobre o desconhecido e tecnológico mundo que fala e escreve o que é ininteligível pra maioria de nós. Poderia falar por horas sobre quão impressionantes são os japoneses, quão mais puro é o ar, quão inacreditável e inigualável é o sabor das comidas. Eu poderia encher o texto de floreios e ratificar todo o estereótipo do qual sempre ouvimos falar, se eles não fossem tal qual somos nós, se as comidas não fossem como as nossas, se o que eu tivesse visto não fosse só uma realidade minha, adicionada de alguns filtros, claro. Desculpa se te escrevo sem muito traquejo de marqueteira, mas não serei panfletária desse país que, sim, é maravilhoso, mas, de tão diferente, é bastante parecido com o nosso.

Japoneses, no geral, são introspectivos e tímidos, mas percebi que muito mais pela inabilidade de se comunicarem com outras pessoas do que à indisponibilidade voluntária. Também percebi os sorrisos mais fáceis quando fomos a lugares menores. Como diria uma música do Pato Fu, "vai diminuindo a cidade, vai aumentando a simpatia". A simpatia aumenta, mas aumenta também a dificuldade de ser compreendido falando inglês, já que eles, assim como nós, não são naturalmente fluentes em uma língua que não é a nacional, mas a comunicação é inerente à espécie que somos, então funciona de um jeito ou de outro.

Não passamos tanto tempo para que eu possa falar com propriedade sobre as mazelas sociopolíticas daquele país, mas estivemos tempo suficiente para que eu possa afirmar que são, em maioria, retrógrados, machistas e classistas, mas tenho certeza que, assim como aqui nas terras tupiniquins, lá os ares das sociedades progressistas irão soprar.
Se perceber, a sociedade onde vivemos também levanta suspeitas de turistas que aqui vem: essa malandragem, o jeitinho, os "mãos leves" e todas essas doenças sociais que, ainda que não façamos parte de tudo, nos acostumamos para melhor viver, está inserida em um país de belezas cênicas estonteantes e inigualáveis que é o nosso país. E, olhando por este mesmo prisma, foi esse Japão que eu amei. A sociedade é peculiar, mas a história é magnífica, forte, cheia de personalidade, e os cenários… Ah, Adah, os cenários… Aquele misto de natureza e construção, aquele equilíbrio de sabores e texturas, de estar rodeada de pessoas, andar por alguns instantes encontrar-se em meio a árvores, com um horizonte aberto à frente… E ficar deslumbrada, com o olhar distante e os pensamentos perdidos em mim.

Eu sei que esse é o tipo de turismo que você gosta, o contemplativo. Aos poucos tenho me descoberto ser assim também, de querer ir devagar, de olhar, de observar, de me perder e me encontrar, de parar por alguns minutos e internalizar o que vejo e sinto. E há um lugar que eu gostaria muito que você visse e sentisse: Hiroshima. As cicatrizes de Hiroshima, certa vez dita por Vinícius de Moraes "sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada", hoje são encobertas por parques verdes e por monumentos à paz e àqueles que padeceram. No museu, erguido para contar o contexto do fatídico 6 de agosto, encontrei relatos em vez do ufanismo que já estou acostumada a ver em ares ocidentais. Andei pelo Parque memorial da Paz, que abriga os restos de uma edificação icônica sobrevivente da explosão nuclear, e vi uma cidade viva. Percebi como são os japoneses em sua essência: respeitam e reverenciam seus antepassados, mas são práticos e objetivos em seguir adiante, trabalhando duro para prover um futuro melhor.

O culto aos antepassados é tão forte quanto o respeito pela natureza, cultuada quase como deidade mesmo. É lindo e forte. Quando for a Hiroshima, que estou certa que isso acontecerá, tire dois dias para pernoitar em Miyajima. Miyajima é uma ilha próxima à Hiroshima que tem sua natureza bem preservada e um teleférico que leva ao alto do Monte Misen. Os transportes à ilha só funcionam durante o dia, e infelizmente não tivemos tempo suficiente para dormir lá, mas lemos algumas placas na cidade que falavam sobre os barulhos que os espíritos fazem ao caminhar pela floresta durante a noite, e estou certa de que você faria um relato incrível a respeito disso. O dia que passamos em Miyajima foi um dos pontos altos de nossa viagem ao Japão, e certamente o dia mais introspectivo e calmo, mesmo correndo dos cervos que queriam roubar nossos doces. Foi quando paramos para conversar sobre as pessoas, sobre os lugares e sobre a comida. Não falei da comida, não é? Mas acredite que vai ser um dos lugares do mundo com os alimentos mais frescos que você vai comer. E tudo bem optar por não comer bichinhos: eles sempre tem opções igualmente deliciosas sem proteína animal.

No alto do Monte Misen, sentamos em um degrau do mirante e ficamos em silêncio por alguns instantes, e foi desse lugar que escolhi tirar a foto que resume a experiência de visitar o Japão: equilíbrio.


Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti sobre suas viagens.
Como tudo que vai, volta, começaram a chegar as cartas-resposta. Dessa vez quem escreveu foi a Emília Braga.