Uma Nova Vida: O Voo | Iradex

Uma Nova Vida: O Voo

Giovani precisou conviver com a dor da perda e a alegria da liberdade. Agora, depois de muito tempo, novamente alguém consegue encantá-lo.

Uma Nova Vida é um conto escrito por Amauri Vargas, ilustrado por JP Martins e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque na última parte dessa leitura.

Parte 01 - O Ataque
Parte 02 - A Morte
Parte 03 - O Destino

Se quiser uma imersão durante a leitura, coloque os fones e ouça “Areia”, de Dani Black.


Uma Nova Vida: O Voo

O carro entrou na via que dava acesso ao terminal doméstico, mas não parou ali. Avançando pelo menos por mais um quilômetro o motorista que havia errado a entrada dois minutos antes, se desculpava com o homem no banco de trás. Não seria este, no entanto, um problema: o voo sairia dali a três horas e houve antecedência suficiente para fazer tudo com calma.

O homem vestido com um blazer azul marinho segurava um sobretudo preto aparentemente pesado no braço esquerdo, parte do uniforme da empresa aérea. Andava com cuidado para que a peça permanecesse impecável, enquanto a gravata, também em tom escuro, era mantida junto ao corpo por uma presilha prateada, como mandava o manual da companhia. Uma única peça não era prevista no traje: um cachecol aveludado e cinza mantinha pescoço e ombros protegidos do vento extremamente frio que atingia as portas do terminal internacional, única barreira que separava o ambiente climatizado lá de dentro, do frio selvagem lá de fora.

Já no embarque internacional, depois de passar pelos bloqueios da autoridade aeroportuária, ele caminhou com o maleiro dos comissários arrastado pela outra mão, a que não segurava o casaco, e usou as próprias credenciais para acessar o Despacho Operacional¹ da empresa para a qual trabalhava. Chegou antes de toda a equipe e conseguiu acessar as informações de voo por meio de um dos tablets enfileirados e repousados em docks, ao longo de um balcão retilíneo, conectados à cabos que transmitiam energia e dados.

Apesar de checar algumas informações importantes sobre o voo no qual trabalharia aquele dia, não se conteve após ler o nome de um dos pilotos escalados para conduzi-los de Los Angeles à São Paulo. Passou pela área de segurança com a intenção de alcançar o quiosque da Starbucks. Pediu um longo copo de leite de amêndoas vaporizado para aquecer o corpo, já que não tomava café há pelo menos cinco anos, um hábito que manteve pelo tempo que foi casado.

Papeou com uma das atendentes, a que sempre o atendia no LAX quando ele assumia os voos vindos da capital da Coréia do Sul rumo ao Brasil, sua terra natal. Encontrou em seguida a equipe para o briefing que seria conduzido pelo chefe de cabine e, após entrar no Boeing 777, realizou um checklist de tudo que precisava ser preparado antes da chegada dos passageiros, junto com os colegas que atendiam a primeira classe.

Quase quinze minutos após o início do embarque e com o avião ainda recebendo várias pessoas, viu uma senhora ter um ataque histérico em português com um dos comissários mais jovens daquela tripulação. Tudo, apenas porque queria que sua cadelinha ocupasse o assento ao lado do seu, na coluna do meio do avião e não no chão, como determinava a observação em seu ticket.

Com o visível nervosismo do colega ele interviu para encontrar uma solução, já que era o único brasileiro na equipe. Giovani explicou em sua língua nativa a razão pela qual a cadelinha – que mantinha-se tranquila a despeito do chilique de sua humana – deveria voar no chão.

Uma terceira comissária interfonou para a ponta do avião e um minuto depois o Comandante surgiu. O homem alto, asiático, com pouco mais de 40 anos e de porte esguio usava o quepe de piloto quando interpelou a todos ali.

Apenas meneou a cabeça em direção à senhora que, ao ver sua postura, calou-se. Olhou para Giovani com a cumplicidade de alguém que já conhecia e se dobrou, em sinal de respeito. O comissário retribuiu a atitude e também se curvou para cumprimentá-lo. Em inglês o coreano perguntou o que acontecia, mas a mulher manteve-se calada.

Ele, então, desejou bom voo a todos e depois de ficar olho a olho com Giovani, sorriu discretamente, antes de desaparecer rumo ao cockpit da aeronave. Ninguém o tocava dessa forma desde que André partiu. Todos se sentaram e, já com as portas fechadas, a decolagem foi autorizada.

Na cabine, piloto e co-piloto avançaram as manetes² de potência de Idle³ até aceleração total para tirar o imenso jato de 270 toneladas do chão.

- V14. — Sentenciou o co-piloto.

- Rotate5. — Anunciou o comandante.

Sentado em uma poltrona retrátil, rente a uma das portas, Giovani olhou pelo vidro e pôde vislumbrar o horizonte apontando sobre o mar, bem embaixo do céu da Califórnia.


¹ Espaço das companhias aéreas nos aeroportos dedicado ao briefing das equipes de tripulação. (N. do A.)
² Alavancas localizadas dentro do cockpit, utilizadas para controlar a aceleração de uma aeronave. (N. do A.)
³ Ponto morto nos motores de avião, que mantém as turbinas em movimento, mas sem exercer nenhuma força ou empuxo. (N. do A.)
4 Velocidade máxima durante a decolagem na qual os pilotos podem parar a aeronave com segurança, sem risco de sair da pista. (N. do A.)
5 Velocidade segura para a decolagem. (N. do A.)


Esse conto foi escrito por Amauri Vargas e ilustrado por JP Martins para o Contos Iradex.
Para reprodução ou qualquer assunto de copyright a autora e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Amauri Vargas é jornalista, fala mais do que deveria e bebe menos do que gostaria. Pai de duas gatas, marido de um romântico e filho de um herói, sempre escreveu ficção que ninguém lia. Até agora.
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