Felipe,
Atravessando as terras altas da Escócia, na van que arrumamos de última hora, em direção ao famoso Loch Ness, ainda no escuro da madrugada, fiquei elucubrando sobre companheiros de viagem. Muitas vezes testemunhei uma enorme tensão entre famílias ou amigos que viajavam juntos. Diferenças de expectativas ou de personalidade. Infelizmente, conseguir uma boa companhia de viagem é achar agulha em palheiro.
Amigos querem viajar juntos, mas as férias ou a disponibilidade do vil metal não coincidem. O marido quer ir com a esposa, mas os lugares sonhados são distantes. As amigas estão juntas em Paris, mas uma quer fazer todo o possível nas horas pagas em euro e a outra quer se fingir de moradora preguiçosa da cidade luz. Um amigo programou toda a rota milimetricamente, mas o outro quer se perder e arriscar. Os filhos querem ir aos brinquedos e correr pelo parque, a mãe só quer uma espreguiçadeira na praia. Por isso, quando quatro pessoas conseguem estar em sintonia numa viagem, a deusa Fortuna deve ser reverenciada.
Saindo de Aberdeen, tudo deu certo. Conseguimos um trem num bom horário, um Ibis no centro por um preço inacreditável e aquele restaurante italiano, quentinho, para apreciar a nevasca lá fora.
No dia seguinte, sempre com o som das gaitas de fole de fundo, Edimburgo nos recebeu carinhosamente.
Caminhando sem pressa até o castelo, entrando e saindo das lojinhas de quinquilharias para turistas sem comprar nada, seguimos conversando sobre a história da cidade. Já no fim do dia, depois de passear pelas ruas bem cuidadas com paradas no museu nacional e em pubs pelo caminho, entendi perfeitamente porque a sra. JK Rowling, podendo escolher qualquer lugar no mundo, escolheu morar aqui.
E finalmente à noite, cedendo aos meus gostos fantasmagóricos, vocês me acompanham na assustadora ronda pelas ruelas assombradas por todos os tipos de fantasma, com e sem cabeça. Nunca saberemos se o susto que a guia do passeio tomou quando o órgão da igreja começou a tocar no meio de uma de suas histórias foi ou não atuação. Eu acho que foi de verdade.
Tendo mais um dia na cidade, continuando o nosso ritmo em sintonia, concordamos em ir até a Rosslyn Chappel. A igrejinha ficou famosa quando apareceu no filme do Tom Hanks, baseado naquele livro chatíssimo que o mundo inteiro leu. Mas apesar do livro ruim e do filme pior, conhecer a capela e seus arredores foi uma das coisas mais acertadas de uma viagem já tão acertada. Que lugar incrível, e que histórias bizarras, que misturam os conhecimentos ancestrais daquele povo com as tradições dos cristãos que vieram depois. As paredes e pilastras cheias de símbolos, onde o Green Man e Jesus Cristo convivem tranquilamente, vigiando os turistas e o gato que dorme refastelado no banco dos fieis. Lá fora, você não reparou, mas no cemitério coberto pela neve, várias lápides indicavam nomes de mortos que pouco viveram. Era um cemitério de crianças, e preferi não chamar sua atenção para isso.
No ultimo dia antes de voltar para Aberdeen, dentro da van, pensando sobre a sorte de estarmos tão sintonizados naquela viagem, vendo o nascer do sol nas montanhas celtas, percebi que poderíamos ter um dia claro naquela época do ano, o que seria como ganhar na loteria. E ganhamos. Depois de passar pelas vilas de contos de fada no meio das montanhas e do lago com o melhor nome de todos, Loch Lochy, finalmente chegamos ao imenso Loch Ness. Enfrentando o barco para atravessá-lo (você sabe que não gosto de barcos), ficou claro que não será do sonar a bordo que virá a comprovação da existência do famoso monstro. Não importa. Tenho certeza que na prainha das ruínas de Urquhart, enquanto vocês tiravam fotos do robin na pedra, eu vi as costas do monstro nas ondulações do lago. Sim, tenho certeza de que não era um tronco, e soube naquela hora que ele não vai mais se mostrar para o mundo. Assim como a Morgana nas brumas de Avalon, Nessie ficará para sempre protegido no fundo do seu lago.
Que lugar a Escócia! Um lugar cuja escuridão faz todo dia ensolarado ser festejado como uma dádiva preciosa. Um mundo de paisagens de tirar o fôlego. Uma terra de gente simpática, de cabelo vermelho, de tradições curiosas e de fala enrolada.
E na hora da partida novamente eu saio da ilha da Bretanha, dessa vez pelo mar do norte, com aquela dor no peito que sempre tenho desde que tive que ir embora pela primeira vez. Torcendo para que eu consiga voltar. Torcendo para que eu tenha mais viagens com companheiros assim. Torcendo ainda mais para que você guarde no seu coração esses dias tão incríveis, e que me traga na lembrança se um dia, no futuro, você voltar aqui sozinho ou com outras pessoas especiais.
Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti durante suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.