Aquela manhã tinha começado como qualquer outra.
Eram 6h, com sono, prepara o café da manhã dos filhos, do marido, coloca roupas para lavar na máquina – na hora do almoço eu estendo - pensou. Tira carne para descongelar pro jantar, veste criança, arruma mochila, acorda o marido.
- Tá pronto, gente.
Todo mundo come e ela entra no banho correndo para se arrumar para o trabalho. – Tchau mãããe! Sai do banho e todos já saíram. Hoje não ganhou beijo.
Uma mensagem no celular: Feliz dia! Boa sorte!
Feliz dia de quê? Olhou para fora. O dia estava lindo como qualquer outro.
Café preto, puro e sem açúcar. Porque açúcar engorda.
O mês de março é lindo, porque chove e faz sol. De fato, são “as águas de março fechando o verão, promessa de vida no meu coração”. Hoje não era qualquer dia mesmo, era a reunião anual onde novos gerentes seriam indicados.
Já havia pleiteado a vaga três anos atrás, mas foi recusada porque estava grávida na época. Não sabia onde estava escrito que grávidas perdem a capacidade de gestão.
No ano anterior não pleiteou, pois, de tão ocupada com filho pequeno e tentando conciliar a pós-graduação em gestão de pessoas para melhorar seu currículo, perdeu o prazo de inscrição.
Pega metrô lotado, pasta, bolsa, marmita – está caro comer na rua, a comida não é saudável e, engorda. - Será que estou bem com essa roupa? Meu cabelo está bom? Estou com cara de séria? Esqueci de fazer as unhas.
Chega na empresa e é recebida com um botão de rosa. Correndo, não entendeu, mas aceitou de bom grado. Já eram 8h50, e a reunião começaria às 9h. Deixou tudo em sua mesa e subiu para a reunião.
Após quarenta minutos falando sobre a empresa, o Presidente anuncia os candidatos a cada cargo de gerência. Quatro cargos estavam vagos e a política da empresa era que quem os ocupasse, ficaria nele por dois anos e posteriormente seria reenquadrado em cargo igual ou superior. Na empresa havia apenas uma mulher ocupando o cargo naquele momento, e nove homens.
O anúncio parecia de melhor filme do Oscar, ou quem sabe melhor ator/atriz. Por um momento sua mente foi longe, como se passasse o filme da sua vida dentro da sua mente. Quando entrou na empresa como assistente administrativo e o quanto teve que lutar para subir até o cargo atual: se vestia bem, ignorava o assédio do chefe, ganhava menos que o filho do presidente que ocupava o mesmo cargo, mas tudo bem. Teve medo de perder o emprego quando engravidou, mas foi forte e seguiu em frente. Ignorou comentários maldosos de que havia engordado. Fez pós graduação, estava a um passo da gerência. Já tinham passado dez anos ali. Pensou no seu discurso.
Anunciaram os vencedores, quer dizer, os gestores. Quatro homens, nenhuma mulher. Ela não estava lá. Nem ela, nem tantas outras – não só ali, mas em tantos lugares.
Foi rebaixada do cargo de atriz principal da própria vida para mera figurante. Pensou: até quando? Olhou para os sorrisos expostos, quatro homens, não necessariamente com currículos melhores ou experiências mais concretas. Apenas homens.
Já era hora do almoço. Em sua mesa havia um bombom e a flor murcha da manhã. Havia também um bilhete:
Feliz dia da mulher para aquela que embeleza nossas vidas!
Assinado: A empresa.
Comendo a salada e o grelhado da marmita, nem cogitou em sair da dieta para comer seu bombom, depois daquela manhã. Suspirou fundo: embelezo, mas ainda preciso perder 5 quilos.
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Conheça o @OlharesPodcast, podcast da Aline Hack, a mulher maravilhosa que escreveu o conto acima, que pretende cutucar as feridas com uma dose de carinho, mas com muita verdade.
O primeiro episódio, lançado hoje, está disponível em www.olharespodcast.com.br. No player abaixo você escutar o piloto pra ter um gostinho. Bora abrir os olhos?