Felipe,
Você não precisa ir longe para viajar. O que importa numa viagem é aproveitar o momento que podemos sair da inevitável rotina da vida. Tem gente que vai para o Japão e não viaja. Tem gente que faz a melhor viagem da vida há poucos quilômetros de casa. Fernando Pessoa escreveu: “Para viajar basta existir... A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”.
Quando eu era criança, meu programa preferido era ir ao planetário do Ibirapuera. Eu me lembro da maquina de projeção, que tinha a aparência de uma formiga gigante, e das fileiras de cadeiras que formavam um circulo em volta dela. Aquela coisa lançava no teto abobadado a imagem do céu de São Paulo. Começava com um céu que eu via sempre, num dia sem lua e sem nuvens, só umas parcas estrelinhas aqui e acolá. Esse era o céu da minha infância e continua sendo o céu da minha vida cotidiana. Nós, paulistanos, como a maioria das pessoas do mundo, nos divorciamos do céu há muitos e muitos anos e quase mais ninguém olha pra cima, nem de dia, nem de noite.
Mas aí acontecia a magia. Aquela formiga limpava o firmamento da poluição e das luzes da cidade e devagarinho ia mostrando como veríamos o nosso pedaço de céu, se não tivéssemos construído uma cidade gigantesca ali. Eu ficava completamente embasbacada. Por mim, ficaria ali para sempre, parada no tempo. Entendia perfeitamente porque as pessoas falavam que iríamos para o céu quando morrêssemos. Qual lugar podia ser melhor?
E o que tudo isso tem a ver com Pirambóia?
Numa época bem lá atrás, bem antes da sua existência, uma amiga que perdi para o tempo pediu para que eu e a tia Simone fôssemos com ela para Pirambóia. A mãe dela, por razões obscuras, tinha comprado uma casinha nessa vila, que ficava mais ou menos perto de Botucatu e totalmente longe de qualquer lugar que nós, garotas de São Paulo, julgássemos minimamente civilizado. Mas amizade é amizade e levamos alguns livros e o nosso inseparável baralho, prontas para o mais entediante dos fins de semana.
Pirambóia não tinha nem uma igreja decente, nem a pracinha que fica em frente às igrejas nas cidades pequenininhas. Nem coreto, nem sorveteria, nem nada. Era só uma rua, com casinhas simples e um mercadinho que vendia, pelo que deu pra espiar de fora, lápis de cor, panela, vassoura e cerveja.
No domingo, depois do almoço, seguimos nós três, para além da rua, encontrar uma estradinha de terra e um trilho que nos levou até uma estação de trem abandonada. Pesquisando depois, porque naquela época as perguntas tinham que esperar para serem respondidas, eu descobri que a estação foi construída em 1888. Uma data fácil de guardar na minha memória, pouco afeita a guardar datas. Um lugarzinho bem bonito, apesar de abandonado. Lá ficamos um bom tempo, conversando e fumando nossos cigarros, que fumávamos às escondidas. Não me lembro sobre o que conversamos tanto mas naquele tempo tudo parecia ter grande importância. Lembro apenas que o mundo passava por uma fase de discos voadores. Todo dia, histórias incontestavelmente verídicas de aparições e abduções passavam até no Jornal Nacional. Então, corajosamente, decidimos esperar anoitecer e ver se conseguíamos algum contato de qualquer grau.
Infelizmente, caso você esteja esperando uma história de alienígenas, não fomos visitadas por nada naquela noite, a não ser por uma vaca perdida que mugiu por perto e nos deu um susto enorme. Mas ainda é uma história de mistério. Naquela noite, me deparei com um céu estrelado, ainda mais estrelado do que o céu do planetário do Ibirapuera. Pode acreditar em mim, existe mesmo a tal via láctea.
Debaixo daquele céu, inacreditável para três meninas criadas no asfalto, falamos sobre o maior dos mistérios, sobre o que era a realidade, porque o que víamos era só a luz das incontáveis estrelas, que não estavam mais lá e podiam já nem existir mais.
E lembramos também que éramos, todos nós, poeira de estrelas, como tínhamos aprendido com o Carl Sagan numa outra noite de domingo.
Passado algum tempo, não tenho muita ideia de quanto, voltamos para nossos livros e para o baralho, seguindo a tênue luz que vinha da rua das casinhas.
Estávamos certamente felizes e com um pouquinho de medo. Não dos mistérios do céu ou do mundo, mas da vaca, que deveria estar por perto.
Eu não tinha como saber, mas foi a única e última vez que vi um céu daqueles fora de um planetário.
Acho que o mundo está se esquecendo de muitas coisas: de amizades sinceras, de jogar baralho na calçada, de caminhar no escuro, de discos voadores.
Eu tenho medo de esquecer do céu de Pirambóia.
Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti durante suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.