O Natal é época de presentes e festejos, mas também é de aprendizado e crescimento. Onde está o seu ventilador?
O ventilador e a perda da inocência é um conto da nossa série Especial de Natal, escrito por Gabriel Franklin, ilustrado por JP Martins e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
O ventilador e a perda da inocência
O período natalino é para muitos de festividades e alegrias. Mas, para mim, já há algum tempo o mês de dezembro tem um significado diferente. E tudo começou por causa de um ventilador.
Era véspera de Natal, logo depois da ceia. Todo mundo já tava naquela fase de desabotoar a calça pra estufar a barriga e ir arranjando um canto pra se encostar. Mas eu não. Eu tinha um plano. Não lembro exatamente minha idade, mas sei que era grande o suficiente para bolar um plano e colocá-lo em prática.
Dormi a tarde toda (a parte fácil do plano), comi pouco na ceia e até tomei uma xícara de café (as partes difíceis), tudo isso com um objetivo claro: ficar acordado e esperar o Papai Noel. Saí de fininho de perto da penca de parentes barulhentos e fui para o quarto. Chegando lá, deitei na cama ainda de roupa de festa e liguei o ventilador.
Era um daqueles de coluna, maior que eu, com três velocidades. Você já deve ter visto vários como esse, mas aquele era especial. Além dos botões de velocidade, havia um outro, mágico, que acendia uma luzinha fraca, mas que gerava iluminação suficiente para afastar os monstros que habitam um quarto escuro. Assim, munido da coragem adicionada pelo ventilador, comecei minha vigília para esperar o bom velhinho.
A maior parte das espera consistiu em ouvir os barulhos das conversas da sala, meio abafados pelo ressonar do ventilador no seu eterno vai e vem. Segui firme por um tempo que nunca vou conseguir determinar, tendo inclusive fingido dormir quando minha mãe veio checar se estava tudo bem comigo, até que finalmente me entreguei ao fato de que sou um péssimo bolador de planos e dormi de verdade.
Também não sei quanto tempo fiquei dormindo, mas quando fui acordado por movimentos no quarto, percebi que já não havia barulho na sala. Devia ser tarde, bem tarde. E os movimentos deviam ser Dele. Só podiam. Quem mais estaria farfalhando papéis de presente na noite de natal junto à minha cama? Mas não era Ele.
Pela fraca luz do ventilador eu distingui formas bem diferentes das que eu esperava ver: não tinha barba branca nem roupa vermelha, e sim um cabelinho curto e roupas pretas de festa. Era minha mãe.
Meu cérebro entrou em parafuso. Ao mesmo tempo que a verdade se mostrava nua e crua na minha frente, eu tentava criar teorias para continuar me iludindo: ela poderia simplesmente estar conferindo se o que eu pedi na lista (que ela ajudou a escrever) teria sido trazido por Ele; ou quem sabe ela trabalhava com Ele; ou até que minha mãe era o Papai Noel e por isso trabalhava tanto a noite preparando os presentes do ano.
Mas não adiantou. Para cada teoria, eu mesmo já refutava com a conclusão lógica: não existia Papai Noel. Era minha mãe que, apesar de não ser a figura mítica que se veste de vermelho e tem renas, lia minhas cartas todos os anos e comprava meus presentes. Perdi um pouco da minha inocência naquela dia. Mas foi só o começo.
Nos natais seguintes, já carimbado, eu não ligava mais tanto para a questão dos presentes (até porque passei a ganhar apenas um para Natal e aniversário) e tive mais tempo para pensar em outras questões.
Nem todo mundo ia dormir na noite de Natal com a barriga estufada de comida quentinha; nem todo mundo tinha tantas coisas pra celebrar (alguns nem Natal celebravam pois tinham suas próprias festas); nem todo mundo ganhava presentes.
A cada ano, mais e mais de inocência ia escapando de mim, quase que inconscientemente. Tanto que a partir de um determinado momento eu comecei a ansiar por essa época simplesmente pelo desejo de crescer de alguma forma. Aprendi coisas boas também: que panetone é bom pra caralho e que passas não é tão ruim assim; mas, principalmente, que o Natal tem um significado diferente para cada um e que não é errado ficar feliz ou triste com a época, desde que faça algum sentido.
Ainda hoje, inocente que sou, nas festas de fim de ano me preparo para crescer, sem saber muito bem como. Tento refletir sobre o que vivi e planejar o ano seguinte. Mas, como sou um péssimo bolador de planos, vai ter sempre uma luzinha de ventilador para me mostrar as coisas de outro jeito.
Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin e ilustrado por JP Martins para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.