Especial de Natal: Eu nem gosto tanto assim do Natal | Iradex

Especial de Natal: Eu nem gosto tanto assim do Natal

Por que devemos comemorar as "datas comemorativas"? Sua história vale mais que uma tradição?

Eu nem gosto tanto assim do Natal é um conto da nossa série Especial de Natal, escrito por PJ Brandão, ilustrado por JP Martins e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.


Eu nem gosto tanto assim do Natal

Sabe aquele sorriso amarelo que você faz ao acenar pra alguém que você não gosta muito, mas tá ali perto, convivendo, puxando assunto e tal? Sou eu e o Natal. Não se preocupe que eu não vou escrever aqui nada que procure mudar seu amor por essa data do ano tão querida por famílias e lojas de varejo, mas vou contar aqui a minha experiência com essa e com outras datas comemorativas e como isso mudou minha forma de ver o mundo. E pra isso a gente tem que ir ao dia 23 de dezembro de 2006.

Confesso que não sei exatamente se foi nesse dia que o meu pai saiu de casa para nunca mais voltar, mas na minha memória esse dia ficou tão presente que preferi aceitar a indefinição como certeza. 23 de dezembro de 2006, depois de meses conturbados, meus velhos se separaram e o meu pai saiu de casa definitivamente. Depois desse dia, eu acho que posso contar nos dedos das mãos (talvez apelando um pouco pros dos pés também) as vezes que o vi. E naquele ano de 2006, o Natal foi uma bosta. Faz 10 anos.

Hoje em dia até que superei esse momento (não completamente, claro, afinal aqui estou eu novamente escrevendo sobre isso), sinto mais falta das lembranças da infância do que de fato da presença dele, mas hoje eu procuro analisar esse acontecimento sob diferentes óticas. E ver sobre diferentes óticas traz diferentes filosofias e uma delas eu sigo à risca desde fevereiro de 2008, quando o que eu já vinha imaginando se confirmou.

Era meu aniversário. Eu tinha acabado de passar na faculdade, meus amigos do Ensino Médio ainda estavam todos juntos. Tanto que decidimos comemorar a data na casa de um deles, no Eusébio, região metropolitana de Fortaleza. Até a minha mãe, à época com 61 anos, decidiu ir, ela que não gosta tanto de sair de casa. Como tínhamos medo de arrombamentos, já que a casa em que morávamos ficava em uma rua tensa, minha tia decidiu ficar tomando conta da residência enquanto fomos festejar.

Parabéns pra você, bolo, palmas, aêêê, churrasco (esse meu amigo é gaúcho, então o churrasco estava implícito). A memória se apaga da cabeça quando eu tento lembrar a ordem dos fatos e como aconteceu. O que eu lembro é: 1) minha mãe voltou pra casa mais cedo pra que a minha tia pudesse voltar pra casa; 2) minha prima, grávida de 7 meses de sua primeira filha, foi buscar minha tia de carro; 3) enquanto minha tia ia para o carro, dois homens armados abordaram minha prima, exigindo que ela entregasse as chaves do veículo; 4) ao negar entregar, os homens a arrastaram puxando-a pelo cabelo pela calçada, derrubando-a e ferindo os calcanhares dela; 5) eles levaram o carro; 6) eu cheguei em casa no meio da bagunça de lágrimas, raiva e carros da PM.

Do caos, eu lembro de uma coisa que fiz. Ao ver minha prima chorando no banco de trás do carro do esposo, chego perto dela, seguro a mão dela e peço desculpas. Meses depois a minha priminha nasceu tranquilamente e hoje, com seus 7 ou 8 anos, chega aqui em casa e fica toda serelepe, falando dos trabalhos que fez na escola e sobre desenhos animados. Mas naquele momento, pela capacidade humana inconsciente de significar e se por como centro do mundo, eu me senti culpado por tudo aquilo. E reside aí a virada de pensamento que eu tive, anos depois, ao analisar ambos os fatos.

O mundo não para porque é Natal. O mundo não para porque é nosso aniversário. E ao invés de ficar triste por isso, eu achei um motivo para ficar feliz (nós fazemos isso o tempo todo, acho que é a máquina que faz a gente andar pra frente no fim das contas): eu vou ser a pessoa responsável por dar significado às minhas datas. Em vez dos filmes ou da certidão de nascimento dizer que tenho que comemorar isso ou aquilo, eu prefiro celebrar outros dias. O dia da minha defesa da monografia, do mestrado, o dia que passei no doutorado, o dia em que ela disse "sim" ao meu "quer namorar comigo?", o primeiro dia em que de fato morei na minha casinha.. Se algo de ruim acontecer nesses dias, a vida segue, vou atrás de significar e ressignificar novas conquistas ou mesmo as perdas. Tudo depende de mim.

Por isso, antes de dizerem que quero ser o Grinch e tirar a alegria dos seus Natais, eu quero propor um exercício: procure ressignificar seus dias você mesmo. Faça o Natal durar mais que um dia, assim como o Ano Novo, ou seu aniversário, ou seu Dia dos Namorados. É você quem dita isso antes de qualquer pessoa. O Natal não tem nada a ver com a separação dos meus pais, assim como o meu aniversário nada tem a ver com a violência sofrida pela minha prima. Em consequência, eles também não são responsáveis pela minha felicidade, a menos que eu assim o queira.

Em 1914, pouco mais de 100 anos atrás, os soldados britânicos e alemães que combatiam na Primeira Guerra Mundial saíram de suas trincheiras para jogar conversa fora, tocar violão, rir e jogar futebol entre si no episódio histórico que ficou conhecido como Trégua de Natal. Bonito, mas alguns dias depois eles estavam novamente seguindo ordens superiores, se estripando e explodindo a cabeça uns dos outros.

E aí eu pergunto: que porra de espírito natalino é esse?

Que nos revoltemos. Que nos coloquemos como força de mudança do mundo, e isso também na trincheira do campo simbólico. Que nos entre na cabeça que enquanto muitos querem que a gente pense que o Natal é uma pausa nas hostilidades, que a gente ressignifique e faça das hostilidades pausa, cada vez mais raras, em 365 dias de Natal. Se o Natal é tão importante, faça ele ser todo dia. O primeiro beijo, a primeira conta paga, o dia em que você e seu/sua cônjuge compraram a primeira geladeira pro apartamento de vocês. Esses são os dias que mais importam. Os dias que têm a sua assinatura.

E hoje, independente de qual dia seja, Feliz Natal. De coração.


Esse conto foi escrito por PJ Brandão e ilustrado por JP Martins para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Pedro 'PJ' Brandão é roteirista e professor de roteiro para quadrinhos. Nascido e crescido em Messejana, vê o mundo como uma grande biblioteca e, de vez em quando, lê algumas crônicas no dia a dia da cidade e do mundo que habita.
Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.