A Testemunha | Iradex

A Testemunha

Será que por aí não existem testemunhas do nosso cotidiano que nem podemos imaginar? Estaremos realmente sozinhos?

A Testemunha é um conto escrito por Adah Conti e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


A TESTEMUNHA

A criatura estava por perto de novo. Ela gostava de analisar a morte dos seres humanos simplesmente porque eles insistiam em crer em algum tipo de vida eterna.  De todos os seres conscientes, eles eram os únicos que cultivavam a estranha ideia que a separação do todo, que chamavam de vida, era algo além de casual, raro e efêmero. Ela queria presenciar esse incrível devaneio se provando. Matéria transmutada e consciência mantida.

Para isso, habitava esses locais, se esgueirando por entre os quartos e corredores sem ser notada. Algumas vezes, ela achava que alguém lhe lançava um olhar, mas não havia reação, então prosseguia.  Outros entes também vagavam por ali, com diversos propósitos, mas da mesma forma não se detinham em observá-la. Os hospitais eram lugares frios, com energias oscilantes e um constante zumbido.  A criatura não entendia porque justamente naqueles locais tão desfavoráveis eles pretendiam curar os seus doentes. Os homens e mulheres que circulavam por lá não pareciam dar-se conta disso. Iam meio que apressados, carregando sua ciência e seus instrumentos de um quarto a outro. Depois, apenas trocavam de roupa e deixavam o prédio em bandos, distraídos com seus artefatos tecnológicos. Outros entravam desconfortáveis, ficavam brevemente e iam embora apressados, como fugitivos que temessem continuar presos ali.

Os que estavam nos quartos eram bem diferentes. Tinham uma permanente atitude de espera e reflexão. Sua energia era baixa, consumida pela doença, mas sua mente era mais ativa do que a dos seus cuidadores e visitantes, provavelmente porque a rotina das suas necessidades e expectativas tinha sido quebrada e não mais ocupava seus pensamentos.

A criatura, no entanto estava ali pelo fim. Quando sentia que o momento chegava, se aproximava. Novamente não era notada. Eventualmente havia tumulto, correria e aglomeração. Em geral, era apenas ela e seu objeto de estudo. Certa vez a criatura pensou estar presenciando algo insólito. Ao invés da energia dissipada aleatoriamente, sentiu algo como um filete de luz que parecia saber para onde ia. Mas foi tão breve que ela nunca teve certeza.

Mais uma vez sentiu se aproximar o flagrante. Era uma mulher ainda jovem.  A companheira de quarto estava dormindo profundamente e, como já era tarde da noite, a criatura sabia que não haveria agitação.  Chegando bem perto, percebeu que a moça olhava diretamente na sua direção. A princípio, não se importou, pois imaginou que seria ignorada, como usualmente ocorria.  Porém, no instante seguinte, teve a certeza que havia um reconhecimento. A mulher não a olhava. Ela a via. A energia começou a se esvair lentamente e a criatura finalmente compreendeu.


Esse conto foi escrito por Adah Conti para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright a autora e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Adah é cientista por profissão e bruxa por vocação. Tem muitas vontades e poucas certezas. Ama gatos, chocolate e futebol. Tem sangue latino e alma britanica.
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