Remember a day: Parte 3 - O Lago | Iradex

Remember a day: Parte 3 - O Lago

As vezes, não há nada pior do que o silêncio.

Remember a day é um conto escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto foi publicado em 3 partes.


SUMÁRIO

- Parte 1 - O Inimigo

- Parte 2 - O Forte

- Parte 3 - O Lago


O LAGO

Henry desceu lentamente a escada de cordas.

No chão, deu a volta no frondoso tronco da macieira que abrigava o Forte e começou a operar o elevador de madeira que seu pai construiu no último verão. Foi uma adição imprescindível, pois lhe possibilitava levar mantimentos até lá em cima e evitava que ele tivesse que carregar Altair nas costas. O husky já estava pesando além das forças de um garoto de 8 anos.

Enquanto descia Altair operando os mecanismos que envolviam cordas e roldanas, Henry pensava em como sua mãe lhe salvara de ter que executar o plano que certamente levaria à morte de todos os seus soldados. Mas isso não mudava o fato de que ele já tinha tomado a decisão funesta. E a culpa, que ainda pairava sobre seus ombros, parecia deixar o elevador mais pesado. Um minuto transformou-se em vários, e quando conseguiu completar a tarefa, o menino e seu cachorro foram caminhando em direção à casa onde ambos nasceram.

Era sábado, então seu pai já deveria ter chegado, pois trabalhava apenas meio expediente na oficina. Ao entrar na casa, passando pela porta que estava sempre destrancada, logo sentiu o cheiro bom da comida de sua mãe. Ninguém no mundo cozinhava igual a ela. Se bem que ele não provara tantas outras comidas assim, mas tinha certeza que nenhuma seria igual à de sua mãe. Ela estava terminando de pôr a mesa, e não precisou mais do que um olhar para ele saber que deveria ir lavar as mãos.

Nem sinal do pai.

Quando Henry voltou do lavabo, Altair já tinha assumido sua posição de sentido ao lado da sua cadeira.

Ainda nem sinal do pai.

“Mama, o Tata não veio almoçar hoje?”, perguntou cheio de apreensão.

“Claro que sim, Henry. Ele só foi guardar na garagem umas peças pro projeto super secreto de vocês. Tão secreto que eu não tenho a menor ideia do que possa ser. Mas, pelo sorriso que vocês dois compartilham quando falam nele, imagino que coisa boa não é.”

Realmente não era boa coisa. Era ótima! Ele e o pai já estavam trabalhando no telescópio há meses, mas só agora poderiam finalmente instalar as lentes e os espelhos. Por um momento, Henry nem lembrou que estava tão pesado alguns instantes atrás. De um general endurecido pela guerra, virou novamente um garoto de 8 anos que queria ver os anéis de Saturno.

Mas a sensação durou pouco. Somente até o pai aparecer.

Chegou silencioso e sorridente, como sempre. Sentou-se na cabeceira da mesa e estendeu as mãos: a esquerda para a esposa, a direita para o filho. Abaixou a cabeça e foi seguido no gesto. Essa cena poderia ser confundida com uma prece antes de uma refeição, se os três que a executaram não fossem ateus. O pai e a mãe por convicção, o filho por osmose.

Naquela casa, Deus não recebia orações. Na verdade, aquele ato, que se repetia antes de todas as refeições, era um silencioso agradecimento a todas as pessoas que se sacrificaram para que eles três pudessem estar ali. Henry não sabia o nome de nenhuma delas. Os pais não conversavam sobre isso. Era assunto proibido. Assim como era proibido o que ele iria fazer agora.

“Tata, eu tenho uma pergunta”, conseguiu dizer entre uma garfada de ervilha e outra, recebendo um olhar fulminante de sua mãe. Não se conversava durante a refeição. Não com palavras, pelo menos. Ele e o pai davam um jeito de criar formas de se comunicar sem precisarem usar palavras. Mas hoje ele precisava realmente falar.

Sem esperar pela reposta do pai ou pela interpelação da mãe, Henry emendou a pergunta: “Como saber se a vida de seus homens vale mais do que a vergonha de uma derrota?”

Os olhos de ambos os adultos se abriram de espanto. Com uma só pergunta, Henry infringiu duas regras. Não se falava durante a refeição. Não se discutia sobre a guerra.

Antes que o pai pudesse responder, a mãe o interrompeu: “Henry, nem mais um pio!”, com uma voz que não admitiria discussão.

Henry continuou olhando para o pai, ansiando por uma resposta. Que acabou vindo, mas não em palavras e sim em Código Morse piscado: “L-A-G-O”.

“Drogi, não pense que eu sou burra. Sei muito bem que vocês inventaram esse código bobo há séculos. Se vão mesmo para o lago depois do almoço, poderiam colher umas amoras para eu fazer uma torta. E agora, comam a comida de vocês!”, novamente num tom que mostrava o caminho sensato a se seguir.

O Lago ficava a 15 minutos de caminhada, que os dois percorreram em silêncio. Passaram pelas amoreiras, mas só as colheriam na volta. Seria desnecessário carregar peso agora. O peso, na verdade, estava no silêncio entre os dois. Um silêncio tão espesso quanto o do Inimigo. O pai nunca falava da guerra, e Henry nunca perguntara nada até aquele dia. Era chegada a hora.

“Sabe, filho, a guerra é uma coisa terrível. Não adianta você ler nos seus livros de fantasia e depois ir brincar na casa da árvore com os seus soldados de chumbo e os dinossauros. Ter vivido aquelas atrocidades todas é algo que não desejo para ninguém. Muito menos para você. Tirar uma vida dói quase tanto como ver uma vida sendo tirada na sua frente. Ter pessoas que dependem de você para sobreviver é uma responsabilidade sem igual. E o bom líder é aquele que faz o impossível para manter seguras as pessoas que lhe confiam a vida. Não importa o preço.”

“Tata, primeiro de tudo que não é ‘casa da árvore’; é o Forte. Segundo que não são ‘soldados de chumbo’ e ‘dinossauros’; são a Brigada Plúmbea e os Dragões Imperiais da Pangeia. Terceiro, e mais importante: eu devo manter meus homens vivos mesmo que isso signifique bater em retirada e admitir a derrota?”

“Sim, filho. Ser derrotado e ficar vivo é muito melhor que ser um herói e não poder mais respirar. Existem lutas que não valem a pena lutar.”

As palavras ecoaram pela superfície do lago e se perderam no vento. Henry olhou para a paisagem e sentiu o peso sair dos ombros.

“Mas, Tata, como vou saber quais as lutas que valem a pena lutar?”

“Henry, quando chegar a hora você vai saber. Tem a vida toda pela frente.”


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursa Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex, tanto no site como no podcast. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.