The Great Gig in the Sky é um conto escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
The Great Gig in the Sky
Existe um velho ditado entre os músicos que diz que a apresentação perfeita vem de braços dados com a Morte. É quase como se você tivesse que se entregar tanto à execução do que quer que esteja tocando, que você não a percebe se debruçando por trás de seus ombros e sussurrando exatamente o que deve ser feito a seguir.
Por consequência lógica, a apresentação perfeita, se vier, é também a última. Mas ninguém se importa. Todo músico, já ouviu esse ditado e nenhum o teme. Na verdade, o que existe é expectativa pela grande apresentação que lhe colocará num diminuto e seleto rol de imortais. Nesse aspecto, gladiadores e músicos se entenderiam muito bem em uma conversa de bar.
Marvin é contrabaixista desde os 12 anos, e desde os 17 está na estrada. Saiu de casa num dia comum, com roupas comuns, rumo a um futuro incerto. Os próximos 5 anos foram passados em alto mar, tocando em transatlânticos de luxo. Ele foi a peça que faltava para que o quarteto Black & White se tornasse um dos mais requisitados para aplacar o refinado gosto dos ricaços que passavam a vida sem preocupações maiores do que o menu do jantar.
Gostava do trabalho, apesar dos olhares desdenhosos que recebia dos expectadores. Ser negro num mundo de brancos era complicado. Eles pareciam suportá-lo em alto mar devido ao seu talento, mas seus irmãos em terra sofriam atrocidades cada vez maiores, as quais ele ficava sabendo pelos jornais que lia nos portos. Dizia para si mesmo que deveria largar tudo e ir lutar por um mundo melhor para ele e seus irmãos. Mas toda vez que tomava a decisão de saltar no próximo porto, vinha aquela pontada em sua cabeça de que a próxima seria a grande apresentação. E ele ficava.
Até o dia em que resolveu realmente seguir o caminho da revolução. Decidido, ao fim de uma longa excursão entre o Velho e o Novo Mundo, comunicou aos colegas de banda a sua vontade de sair. Todos ficaram arrasados. O contrabaixo não é o instrumento mais sonoro, mas é o mais importante de uma banda de jazz. E poucos sabiam tocá-lo como Marvin. O pianista, dono do quarteto, pediu que pelo menos ele esperasse para sair ao fim da próxima apresentação. Seria um cruzeiro luxuoso, mas não num navio transatlântico, e sim num dirigível.
Não seria tão diferente assim, afinal de contas, a mudança do mar pro ar é de apenas uma letra. Mas os olhos de Marvin brilharam ao ouvir isso. Ele sempre quis voar, desde pequeno. E também sempre soube que isso seria impossível para ele, num mundo dominado pelos brancos racistas. Essa era sua chance de ver as nuvens de perto. E, mais uma vez, ele trocou o sentimento revolucionário pelo desejo de realizar seus sonhos.
Agora, lá estava ele, sobrevoando New Jersey a 3.000 pés de altitude e tocando já há quase 40 minutos ininterruptos. A concentração era tanta, que ele só percebeu os olhos quando estava no fim do segundo ato. Eram de um azul profundo, e pareciam brilhar na penumbra do salão decorado com imagens dos locais por onde o zepelim havia passado. Mas não foi a cor dos olhos que mais lhe chamou a atenção, e sim a mensagem que eles pareciam passar.
Não havia desprezo ali, nem mesmo admiração. Havia desejo.
Marvin teve tanta certeza disso quanto da própria capacidade de tocar sem precisar de partituras. O choque desta descoberta quebrou sua concentração, e deveria ter lhe custado um pequeno erro qualquer que macularia aquela que poderia ser a sua grande apresentação. Mas, apesar do choque, ele sentiu-se tão bem, como se fosse gentilmente abraçado por trás, que continuou a tocar sem incidentes.
Continuou também a encarar os olhos, azuis como o céu de maio lá fora, que o Hindenburg singrava placidamente. Um esboço de sorriso surgiu ao imaginar o que aquela noite lhe reservaria.
Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.