Como de costume no natal, presentes aparecem misteriosamente em árvores por todo o mundo. Pode um presente mudar uma vida? Ou até duas?
Família é um conto da nossa série Especial de Natal, escrito por Arthur Zopellaro, ilustrado por JP Martins e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
Família
A corrente de ar gélida raspava sua pele e o suor congelava.
— Feche a porta de uma vez. — exclamou o homem com roupa de dormir.
— Estou tentando mas minhas mãos não respondem. — disse a mulher agasalhada até os olhos.
O pequeno chalé, antes uma sauna, estava agora inundado pela nevasca.
***
Finalmente conseguiu bater a porta mas desistiu de fechar os trincos. A mulher escorregou com a batida e não ousou se levantar, ficou ali jogada.
— Onde está o presente? — O homem perguntou.
Ele estava parado próximo à mesinha do outro lado da sala, certificando-se de que o café não fora afetado pela repentina corrente de ar.
— dixilafor… — Ela respondeu ainda encolhida no chão.
O homem não compreendeu o murmuro. Encheu a xícara de café até transbordar, olhou para a xícara, olhou para mulher, olhou para o bule, olhou para a mulher, optou pelo bule e foi até a esposa.
— Não entendi. Onde está o presente? — Agachou-se próximo a ela e entregou o bule.
Ela se abraçou ao recipiente por alguns minutos antes de começar a entornar o café garganta abaixo.
— dixilaf… — tentou responder, ainda sem fôlego.
— Quê?
— dexi lá fô...
— Deixou lá fora?
Ela apenas consentiu.
— Sua roupa está encharcada, vista algo seco e vá para a cama.
— Eu o vi lá fora.
— De novo com isso, Noelle? Você tem que parar de acreditar nas baboseiras que aquele grupo fica proferindo pela cidade.
— Eu o vi com meus próprios olhos, Rodolfo. Tive uma sensação estranha assim que peguei o presente. Quando olhei para a estrada, ele estava lá... Me olhando. Larguei o presente e vim correndo.
— Você foi até a árvore e deixou o presente lá?
— Você não me ouviu, Rodolfo? Ele estava me vigiando!
— Devem ser aqueles moleques querendo pregar uma peça em você.
— Rodolfo, se você não acredita nele, me diz: quem coloca o presente todo ano naquela árvore?
— Você está falando loucuras, mulher. Isso é assim desde que nasci e pronto. Não precisa de explicação. Muito menos essas explicações loucas. Agora vamos dormir. Amanhã buscamos o presente.
— Não! Há algo de especial naquele presente, não sei o que mas pude sentir.
— Não fale loucuras, você precisa se aquecer.
— Por favor, Rodolfo. Precisamos buscá-lo.
— Tá, tá. Vá trocar de roupa, deixe que eu busco.
***
Rodolfo lutava contra a ventania que o empurrava de volta para o chalé. Ele teria desistido em outro momento, mas a discussão com a esposa o enchera de adrenalina. Ou foi o que disse para si. Não admitiu mas também sentia algo de especial naquele presente mesmo de longe.
Um ponto verde se destacava naquela imensidão albina. A neve repousava ao entorno da árvore mas não ousava tocá-la.
Tudo o que Rodolfo via era branco. Menos a árvore. Menos o embrulho de presente colorido. Menos o velho vestido de vermelho. Aliás, a barba era branca, a roupa não.
Rodolfo buscou abrigo embaixo da árvore que funcionava como uma espécie de guarda-chuva para neve.
— Quem é você, seu velho? Você não me assusta! — gritou em plenos pulmões enquanto apanhava o presente.
O velhinho, de longe, apenas acenou. Rodolfo cresceu em ira, pensou em ir atrás do velho mas antes que pudesse dar o primeiro passo, sentiu o presente em sua mão.
Ao olhar para o embrulho, apreciou uma calma como nunca antes e o calor em seu coração espantou a sensação térmica negativa da nevasca. Teve vontade de desejar um feliz natal para o velho, não entendeu o motivo mas o fez:
— Tenha um bom natal!
A distância entre os dois era grande mas teve certeza que enxergou o sorriso do velho. Com o presente em mãos e um sentimento de paz, voltou para o chalé.
***
O velho, acompanhado de uma criança, assistia o retorno do rapaz.
— Vovô, o senhor não fica triste quando as pessoas brigam com você?
— Só quando são más de coração.
— Mas como as pessoas boas de coração podem ser más as vezes?
— Elas não são más, apenas temem o desconhecido. Têm medo de que aqueles que amam possam se machucar. Ele só queria proteger a família.
— Família? Eu achava que só os dois moravam ali.
— Eles também. — Sorriu. — Ano que vem traremos um presente extra, meu neto.
Esse conto foi escrito por Arthur Zopellaro e ilustrado por JP Martins para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.