Sempre que posso, revisito o famoso discurso “This is Water”, de David Foster Wallace. Desde o primeiro contato que tive com esse texto, fui marcado de forma profunda por uma passagem específica: em meio a uma reflexão sobre como somos condicionados, por nós mesmos, a nos considerar o centro de nossas experiências, ele nos convida a fugir do óbvio e tentar pensar fora da caixa de vez em quando.
Sabe aquele cara que passa te cortando no trânsito? Sim, aquele FDP mesmo que você xingou até a última geração. Provavelmente ele mereceu seu xingamento, mas, já pensou se ele tiver te cortado porque estava levando a esposa grávida ao hospital; ou se ele estivesse na verdade, querendo chegar em casa o mais rápido possível para acompanhar o último suspiro do pai; ou mais, se ele estivesse simplesmente com dor de barriga, literalmente cagando nas calças. Não seria a atitude dele justificável? A probabilidade de que uma dessas justificativas fosse verdadeira é baixa, mas não é nula.
Semana passada eu pensava nisso e lembrei de uma imagem que tem sido largamente divulgada nas redes sociais. Provavelmente você já viu, curtiu e até compartilhou. A imagem é um quadro branco com uma frase em inglês, que quer dizer mais ou menos o seguinte:
“Todo mundo que você encontra está lutando uma batalha sobre a qual você não sabe nada. Seja gentil. Sempre.”
Ela me chamou a atenção por dois motivos: o começo e o fim. Todo mundo e Sempre.
Reflexões
Comecei a pensar primeiro no termo que se refere às situações. Sempre é uma palavra muito forte. Requer muito esforço você fazer algo sempre, por mais que seja fácil e você goste. Mas acho que é por isso que ela é tão importante na frase, no contexto e na reflexão, porque vai requerer justamente que você sempre pense antes de fazer algo. Que você se esforce. Mesmo que não consiga em 100% das vezes, você tentou e evoluiu. E isso é positivo, eu acho.
Já o Todo mundo, que se refere às pessoas, me parece ser mais complexo. Todo mundo é todo mundo mesmo, ou tem exceções? Será que realmente todo mundo está lutando uma batalha? À primeira vista, que batalhas poderia estar lutando uma estrela do cinema? Tá bem, você vai dizer que nunca vai encontrar uma estrela do cinema no meio da rua. Então vamos pra um exemplo mais palpável. Que tal uma criança? Será que crianças estariam inclusas naquele Todo mundo?
Coincidência ou não, foi exatamente depois de quebrar a cabeça pensando nisso que me deu na telha ler um quadrinho que tinham me emprestado há bastante tempo. Pra desanuviar as ideias, sabe? Ir pensar em outras coisas. Mal sabia eu que as próximas 208 páginas iam me fazer mergulhar mais ainda no que eu tentava deixar pra lá.
Eu mato Gigantes
Eu mato Gigantes, da dupla Joe Kelly e Ken Niimura, me veio altamente recomendada, mas eu sabia muito pouco sobre a sinopse. Sabia que tinha sido lançada originalmente em 2008 e que havia ganhado vários prêmios no cenário dos quadrinhos independentes. Não só pelo roteiro, mas também pelos traços do Niimura, que é espanhol com origens japonesas, e conseguiu unir o estilo europeu à dinâmica do mangá (inclusive, a história ser toda em preto e branco tinha me chamado muito a atenção).
À medida que fui lendo, percebi que o enredo é basicamente sobre a história de Barbara, uma espécie de estereótipo do jovem americano outsider: viciado em RPG, com poucos amigos, vítima de bullying na escola. Aparentemente, ela tenta fugir da realidade e viver em um mundo de fantasia só dela, pois tem uma fixação: gigantes. O que pode parecer uma história boba e clichê, torna-se bastante complexa quando a bolha de fantasia que Barbara cria à sua volta começa a prejudicar as pessoas que a rodeiam.
Tenho que confessar que na primeira vez que li, eu julguei a Barbara. Mesmo ela sendo uma criança e mesmo tendo me identificado com algumas situações pelas quais ela passa. Eu a julguei por ser diferente de mim. Julguei suas escolhas, sua impertinência ao negar uma realidade que eu nem sabia de fato qual era, a extrema paixão com que ela queria demonstrar seus pontos de vista sem se preocupar se estava magoando outras pessoas. Parei na metade do quadrinho e comecei a pensar que provavelmente ia dar nota baixíssima quando terminasse de ler. Mas aí, veio na minha cabeça justamente aquele Todo mundo.
O poder da empatia
Imediatamente voltei pro começo do quadrinho e recomecei a ler, desta vez querendo colocar em prática algo que eu acho que vocês já ouviram falar: empatia. E fez toda a diferença, não só para eu ter dado uma nota altíssima pra história ao final, mas pra responder àquela minha pergunta lá em cima. Todo mundo é realmente todo mundo.
Como falou Foster Wallace, somos condicionados por nós mesmos a achar que o mundo é medido apenas pela nossa experiência, pelos nossos sentidos. Isso é compreensível, afinal de contas, é o que temos. Mas não é tudo. Através de um pouco de esforço, podemos sim nos colocar no lugar de outras pessoas, e tentar imaginar o que elas podem vivenciar.
Claro que nunca vai ser a mesma coisa. Nunca vamos poder ter a mesma experiência, as mesmas sensações de outra pessoa. Mas esse processo evita que a julguemos. Evita que percamos tempo tendo raiva por ou de algo que simplesmente desconhecemos.
A junção do Todo mundo com o Sempre nos faz perceber que somos complicados, complexos e difíceis, mas, independente do que quer que seja, todos lutamos nossas batalhas, cada um à sua maneira. Alguns enfrentam os problemas e tentam encontrar soluções o mais rápido possível. Outros fogem deles, achando que um dia simplesmente vão desaparecer. Assim como existem também aqueles que matam gigantes.
Parafraseando o filósofo PH Santos: "Na dúvida, amor."