A Praia: Parte 2 - Madrugada | Iradex

A Praia: Parte 2 - Madrugada

Às vezes temos momentos tão incríveis em nossa vida, que fica difícil de acreditar que eles realmente ocorreram. Continue a acompanhar a história de um desses momentos. Se a história é verdadeira ou não, cabe a você julgar.

A Praia é um conto inusitado, escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto será publicado em 3 partes, sempre às terças-feiras, até o dia 18 de agosto.


SUMÁRIO

- Parte 1 - Noite

Parte 2 - Madrugada

- Parte 3 - Alvorada


MADRUGADA

Era uma noite escura, sem lua. Tão escura que tentei olhar minha mão e não tive certeza de quantos dedos estava vendo (outro fator que poderia contribuir para essa visão prejudicada é que eu estava sem óculos, mas isso é especulação).

Lutando pra não desmaiar (quis dar uma de garotão e forcei demais no ritmo da corrida), três pensamentos me ocorreram ao mesmo tempo: como diabos vou voltar pra casa, já que se eu apagar aqui não tem ninguém nem pra chamar o SAMU; acho que não devia ter comido feijoada no jantar; e, definitivamente, só estou vendo 4 dedos.

Foi quando ouvi ruídos abafados e contínuos vindo de algum ponto atrás de mim. Como não ia conseguir ver o que era aquilo de onde estava (nem se estivesse de óculos), me levantei e fui em direção ao som, meio tropeçando. Vou dizer pra você que nesse caminho pensei diversas vezes em simplesmente dar a volta e sair correndo pra longe dali. Mas, por razões que até agora não entendo, só consegui ir pra frente.

À medida que me aproximei, distingui o que pareciam ser soluços, como se quem estivesse chorando não tentasse mais contê-los. Com os cabelos em pé e já meio que recuperado da tontura pela injeção de adrenalina, fui chegando mais perto e vislumbrando uma forma escura encolhida na areia.

Mais alguns passos e estava bem em frente ao vulto chorão. Com medo de chegar muito perto, ou sequer de tocá-lo, arrisquei um “Tá tudo bem contigo?”, com uma voz que falhou terrivelmente em ter soado confiante.

Os soluços pararam abruptamente. Ao ouvir minha voz, o vulto encolheu-se ainda mais, e a resposta veio apenas com um quase imperceptível aceno afirmativo de cabeça. Ainda preocupado e não acreditando na resposta, fiz a segunda pergunta que me pareceu mais lógica: “Alguém te machucou?”, dessa vez com um pouco mais de firmeza. Outro aceno de cabeça, mas agora negativo e mais veemente.

Sem saber o que fazer e sentindo a tontura voltar, agora que a adrenalina tinha diminuído, simplesmente me sentei ali e esperei. Pouco depois, ouvi um novo som: desta vez o bater de dentes. Ele estava com frio. Tirei uma toalha da bolsa que sempre carrego comigo quando vou correr (nunca se sabe quando a gente vai precisar de uma boa toalha) e a entreguei ao estranho. “É o melhor que tenho”, falei, meio que pedindo desculpas por não poder fazer mais. Sem esperar por uma resposta verbalizada, fui surpreendido por um tremido “Brigada”, quase num sussurro. E percebi que não era um estranho, e sim uma estranha.

Alguns detalhes que eu deixara passar agora vinham à tona e se encaixavam: o suave perfume que senti ao me aproximar (misturado ao cheiro de vodka, strogonoff de frango e areia molhada); o tilintar de algo metálico durante os meneios de cabeça (que agora eu supunha serem de brincos); as unhas grandes que tocaram minha mão quando entreguei a toalha. Mas o mistério do choro permaneceu.

Ficamos ali, calados, até que o silêncio tornou-se insuportável (Detalhe: eu sempre prefiro silêncios, mas só quanto estou sozinho. Se estiver acompanhado, faço de tudo pra preencher o vazio com conversas sobre qualquer coisa) e eu comecei a falar.

Falei da ausência da lua, do meu quase passamento, da feijoada. Ao meu lado, apenas silêncio. Continuei. Discorri sobre as vantagens de se correr a noite e de como o nó errado no cadarço pode causar câncer. Esperei algum comentário, niente. Disse então que vinha ali toda noite há algum tempo porque não conseguia dormir, que preferia os meus horários trocados malucos pois assim não precisava ter muito contato com as pessoas... Teria continuado indefinidamente, mas foi então que os soluços recomeçaram. Tinha feito besteira.

De alguma forma, minha conversa (pelo menos a parte final dela) havia trazido de volta lembranças ruins para a moça, e a única coisa que eu poderia fazer para consertar isso seria tentar levar os pensamentos dela pra outro canto. Pra cima, pro céu. Por isso, comecei a falar de novo.

Apontei pra estrelas que eu conhecia pelo nome e disse de que constelações elas faziam parte. Lembrei das lendas por trás de cada forma, que só com muito esforço a gente poderia identificar. Daí pra falar de alienígenas foi um pulo, e passei a narrar inúmeros causos, meus e de conhecidos, sobre cagaços imediatos de terceiro grau. Enquanto contava sobre as histórias incríveis que já tinham me acontecido ali na praia (prometo que um dia conto a você também) e já estava ficando cansado de tanto falar, percebi que a moça não chorava mais. Agora ela estava rindo.

Eu poderia dizer pra você que a risada dela era a coisa mais linda que já tive a felicidade de escutar, semelhante a coros angelicais, e que a noite (agora madrugada) se iluminou com seu sorriso. Eu poderia fazer isso, mas estaria mentido. A verdade é que era a risada mais feia que eu já tinha ouvido. Começava contida, baixinha, e aos poucos ia ficando descontrolada, espalhafatosa, terminando em sons estranhos saídos do nariz, como se imitando um porco. Repito, horrível. Mas naquele momento eu soube que, enquanto eu fizesse aquela moça rir e esquecer seus problemas, eu seria feliz.

Depois da risada estranha, veio a voz (que não vou descrever agora) e ela me contou porque estava chorando.

 

Continua...


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursa Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex, tanto no site como no podcast. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.