Em uma colcha de retalhes de sonhos indecifráveis, tento encontrar sentido anotando fragmentos desconexos.
Minha velha amiga é um conto escrito por Alex Nunes, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
Minha velha amiga
Tem que significar algo!
Cada vez que acontece parece que vou compreender, mas aí acordo quase sufocando e meu desespero, meu instinto de sobrevivência e a necessidade de respirar me tiram o foco e acabo lembrando apenas de fragmentos.
Decidi manter este diário tentando juntar as peças, registrar o máximo que eu conseguir lembrar, mas a verdade é que ele tem sido meu conforto em muitos outros momentos, e fico irritado quando tento achar sentido nessa colcha de retalhos de sonhos indecifráveis e me deparo com um lista de compras na página seguinte ou observações inúteis sobre minha vida.
Tenho medo de estar ficando louco. Dizem que enquanto você cogita a hipótese, você ainda não está.
Estou com saudades da luz do dia, passear ao ar livre com o sol no meu rosto. Já é assim faz algum tempo, mas se eu não me programar, o trabalho no período noturno e o cansaço que me faz dormir o dia inteiro estão quase me transformando em um vampiro.
Aprendi a ligar os fios com o meu pai, quase sempre bêbado mesmo assim se gabava por nunca causar curto-circuito. Não conheci minha mãe e só frequentei a escola enquanto ele estava vivo, então desde os treze anos eu me viro sozinho.
No subsolo consegui o que chamo de quase dignidade, sempre tenho trabalho, não é fácil ganho mal mas não precisei recorrer ao submundo. Manutenção elétrica, muita coisa que precisa fazer funcionar a cidade lá em cima depende de gente como eu aqui embaixo. Metrôs, hospitais, grandes edifícios, até nos buracos do governo já trabalhei.
Diferente do meu pai, não bebo e o curto-circuito é minha especialidade e não posso me gabar disso. Primeiro o brilho de uma estrela te cega e te joga para os braços da mais profunda escuridão, dela eu não tenho medo, gosto da sensação de paz.
Não sei como ainda estou vivo, mas o emprego, sei que apesar de alguns apagões na quinta avenida e outras bobeiras assim, não tiram o meu crédito, sou famoso por conseguir encontrar os problemas onde ninguém imagina, mas também tenho que resolvê-los onde ninguém quer.
Foi depois de um choque desses de pura energia e paz que comecei ter os sonhos. A escuridão é sempre igual, sempre começa igual, ela me abraça de um jeito com quem diz, não tenha medo, e depois me mostra, mas eu não consigo entender, o Neon brilha, muda de cor, mostra imagens, é um neon portátil e eu acordo com o silêncio ensurdecedor.
Hoje não vou pensar nisso, enquanto todos estarão reunidos na praça para a contagem regressiva do ano novo, eu estarei embaixo de todos eles, atento a qualquer faísca, cheiro de queimado ou fumaça, com uma bolsa cheia de fusíveis, fios, todo tipo de isolantes e torcendo para que 1964 venha tranquilo para os que estão sob a terra quanto para os que estão acima.
As oscilações elétricas estão mais fortes do que outros dias, as lâmpadas de tungstênio que já não iluminam quase nada aqui embaixo, bruxuleiam lentamente entre quase morrer num fino fio vermelho e voltam com a mórbida luz amarelada.
1963 é passado há quatro horas e meia, meu turno está quase acabando e Simon deve chegar a qualquer momento para me render, mas o vai e vem da energia nas lâmpadas me hipnotiza e durmo.
Digo olá para minha velha amiga escuridão, estou embaixo da terra, isso é claro pra mim, essa sensação eu conheço até mesmo nos meus sonhos, meus olhos vão se acostumando com as luzes, mas agora consigo ver pessoas, sentadas outras em pé, estou no que parece ser um vagão de metrô, parado, num túnel, o vagão não está iluminado, parece que alguém não fez o seu trabalho direito. Então me dou conta que as luzes estão na mão das pessoas, elas estão hipnotizadas, cada uma com o seu neon portátil. O Neon se mantém aceso sugando a vida das pessoas e elas aceitam, elas estão rezando para serem consumidas por esse deus e o silêncio é perturbador.
Acordo com o Simon me chamando e lembro de tudo, uma profunda tristeza toma conta de mim, imediatamente pego uma caneta e digo a ele que preciso anotar o sonho, que não fale comigo, não quero esquecer nada. Ele vai embora resmungando alguma coisa que não dou atenção, meu turno acabou, me sinto cansado, não só cansado, mas velho como se tivesse viajado anos luz e voltado.
Decido que vou cochilar mais um pouco e sair daqui de dia e ver o sol.
Sinceramente, não lembro como cheguei em casa, mas realmente não me importo algo mudou dentro de mim. Estou como medo de estar ficando louco e agora estou começando a achar que é verdade.
Durmo novamente, imediatamente estou com ela outra vez, eu sei e ela sabe que as visões ficaram gravadas no meu cérebro, e ela quer me mostrar mais.
Está chovendo, eu ajeito a gola do meu casaco para me proteger, ando pelas ruas eu vi coisas que não consigo descrever, mas ela queria que eu visse as pessoas, e eu vi, eu vi milhares, mais, as pessoas falavam sem dizer, ouviam sem escutar, viviam sem viver, como canções escritas que nunca seriam compartilhadas. Ninguém ousava em quebrar o silêncio.
No dia seguinte, não fui trabalhar, mal tive forças para comer, estava com febre, não sabia mais se estava delirando, se estava dormindo, acordava cansado, até que então ela apareceu outra vez, eu não queria mais ir, mas era preciso ela disse que me protegeria.
Eu entendi que o silêncio estava crescendo como um câncer, as pessoas estavam presas na superficialidade, tudo era vazio, mesmo falando não havia propósito, tudo era fugaz, quem ouvia não se importava, uma conversa que quando se procurava o motivo não se encontrava, eram apenas palavras de silêncio. O mesmo ritual para o deus Neon que eles criaram.
Enfurecido eu gritei, seus tolos, você não sabem, vocês não percebem, estão sendo consumidos, perdendo suas essências, sendo cada vez mais e mais superficiais até perderem sua identidade, cada vez mais iguais cada vez menos críticos, cada vez menos necessários, se tornando indissociáveis num líquido sem forma, num silêncio existencial.
Me escutem, peguem meus braços, talvez ainda possa alcançar vocês, mas minhas palavras caíam como gotas silenciosas na chuva, apenas ecoando no poço do silêncio.
Nesse momento eu sabia que tinha que acordar, estava queimando em febre, já era dia 3 de janeiro, agora eu já entendia o propósito de tudo isso, mesmo assim escrevi cada lembrança, agora nítidas como ver as pessoas no parque num dia de primavera.
Comi apenas para que meu corpo pudesse aguentar a caminhada até o trabalho, se é que eu ainda tinha esse trabalho, mas não importava eram quase três da manhã e era mais para eu estar saindo do que chegando, isso também não importava, sabia que chegaria ao mesmo tempo que Simon ele é o mais próximo que eu tenho de um amigo vou contar tudo pra ele.
Mesmo correndo o risco de ele me achar louco, vou contar tudo pra ele, eu sei que não estou louco. Eu sou o profeta e preciso salvar as pessoas, vou levar as revelações para todos, até que elas estejam em todos os lugares, nas paredes do metrô, nos cortiços impregnadas nas entranhas das pessoas e quando o momento chegar, serão sussurradas no som do silêncio.
Esse conto foi escrito por Alex Nunes para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.
