[lado a] 02. On The Run | Iradex

[lado a] 02. On The Run

On The Run é um conto escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


On The Run

Faz 35.587 dias, 16 horas, 29 minutos e 40 segundos que ele começou a correr.

Os primeiros passos foram dados em uma fria madrugada de outono, do lado de fora do galpão onde morou durante sua vida toda. Foram passos decididos, precisos, que o levaram a cruzar ruas, calçadas, esquinas, becos, travessas, avenidas. Passou em frente a casas, prédios, escolas, supermercados, praças, parques, terrenos baldios, salões de beleza, academias, pet shops, igrejas, hospitais, bares, danceterias, delegacias, farmácias, shoppings, campos de futebol. Muitas pessoas o viram, apesar da hora avançada, mas ele não viu ninguém. Ele só corria.

Quando chegou à rodovia e saiu de sua cidade natal, deu de cara com um campo cercado com arame farpado. Com extrema facilidade, pulou a cerca e seguiu caminho. Passou o campo. E depois atravessou florestas, córregos, depressões, morros, vales, pontes, montanhas, desfiladeiros, desertos e mais rodovias.

Ao se deparar com obstáculos que não podia transpor, ele simplesmente tomava a direita e continuava a correr, mesmo que isso o levasse a voltar pelo mesmo caminho que viera. O importante era não parar. Nunca parar.

Tomou chuva, quase foi atingido por um raio, ficou coberto de poeira e de areia, tomou chuva novamente, se arrastou na neve e chapinhou na lama que veio depois dela.

Com o tempo e as intempéries, seus sapatos se desgastaram e ele acabou correndo de pés descalços. Suas roupas duraram um pouco mais, mas eventualmente tiveram o mesmo destino dos sapatos.

Correr completamente nu não foi um grande problema para ele, na maior parte do tempo. Quando passava por algum lugar habitado, as pessoas geralmente riam dele, caçoando de sua cor ou de suas nádegas perfeitas. Se alguém tinha uma reação mais enérgica e resolvia correr atrás dele, bastava apertar um pouco o passo e facilmente os perseguidores ficavam para trás.

Muitos tentaram lhe entender e arrancar alguma declaração sua. Para isso, seguiam em veículos ao seu lado, com microfones apontados para sua boca, esperando alguma palavra ou sinal. Ele sempre ficara impassível. Nunca interagia com as pessoas com quem cruzava. Nem com as mais amistosas, que se aproximavam oferecendo-lhe roupas, agasalhos ou comida.

Outros tentaram lhe seguir, não para fazer mal como os mais enérgicos, mas simplesmente por verem na calma expressão de seu rosto uma mensagem que ele nem sequer cogitara passar. Esses geralmente cansavam depois de alguns dias, já que ele não parava pra descansar, comer e nem mesmo para ir ao banheiro.

Por mais que demorasse a encontrar pessoas, nunca foi uma corrida solitária, pois ele também passou por animais. Cachorros, gatos, ratos, pássaros, vacas, ovelhas, patos, cobras, insetos, girafas, leões, crocodilos, hipopótamos, tigres, lagartos, macacos. Foram companhias melhores do que a dos seres humanos. Pelo menos eles não tentavam entrevistá-lo.

Em um dado momento, os lugares começaram a se repetir. Uma, duas, dez, vinte, cinquenta vezes. Como nem sempre tomava a mesma rota, demorava um longo tempo para voltar ao mesmo lugar. Mas sempre voltava.

As pessoas o reconheciam. Alguns o reverenciavam. Outras se benziam. As gerações foram se sucedendo e se acostumando com ele.

Nunca decorou nomes dos lugares por onde passou, nem das cidades que cruzou, muito menos das pessoas que encontrou. Na verdade, ele só guardava um nome em sua mente. O seu próprio, que foi proferido por seu pai em uma ordem expressa, na última vez que o viu: “R.14N, corra e não olhe para trás.”

Faz 35.587 dias, 16 horas, 32 minutos e 22 segundos que ele começou a correr.

E ele ainda não olhou para trás.


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursou Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.