Felipe,
Quando você nasceu, uma pessoa me falou, com toda maldade que as pessoas bem intencionadas têm, que dali pra frente, eu não iria mais viajar ou iria só fazer viagens “para crianças”, seja lá o que isso signifique.
Muita gente coloca nos filhos, nos pais, no trabalho, ou em qualquer outra pessoa ou situação, a responsabilidade por não fazer o que (dizem) gostariam. Hoje, como você bem sabe, posso confirmar o que eu já sabia na época. Continuei viajando, algumas vezes com você, outras não. E quando viajamos juntos, me pergunto se suas lembranças vão combinar com as minhas.
Eu me esqueci de levar documentos que comprovassem meus vínculos no Brasil e até mesmo algo relacionado à hospedagem e eu nem sabia qual Bed and Breakfast (ou Bred and Backfast, como falávamos rindo) íamos ficar. Esqueci que eu era uma estrangeira entrando na Britânia e só me lembrei da burocracia do mundo quando, depois de pegar as malas, ficamos eu e você na frente daquele guichezinho da alfândega do pequenino aeroporto. Eu quase dei risada ao ver a cara de incrédulo do oficial de plantão por termos escolhido ir para aquela cidade portuária no mar do Norte, no meio do inverno, vindos daquele lugar lindo, quente e exótico, como deve ser o Brasil na cabeça de um escocês. E como assim, férias em janeiro? Ele perguntou para mim, mas repetiu a pergunta para você. Sim, lá na parte de baixo do mundo é o contrario, agora são as férias de verão. Apesar das muitas perguntas, acho que mais por curiosidade e tédio do que por desconfiança, e depois das devidas explicações, recebemos um "bem-vindo" com aquele sorriso de dentes tortos, tão caloroso e típico dos conterrâneos de William Wallace. E saímos para encarar aquele tempinho maravilhosamente desgraçado de Aberdeen.
Acho que ficamos muito bem instalados no BB da Evelyn, que adorou saber que eu pronunciava corretamente o nome da cidade de Edimburgo (Edimbrá e não Edimburg) e tentou melhorar meu eterno trava língua: “Bir-ming-ham”, que você, como sempre, já acertou na primeira tentativa. E falando em linguas, como traduzir Breakfast por Café da Manhã se não tem café na refeição deles? Ovo, linguiça, morcela (acho que é essa a palavra para o black pudding em português), cogumelos, feijão doce e chá. Depois de um prato desses estávamos prontos para passear pela cidade e enfrentar a neve, para chegar no shopping no fim da Union Street, onde notamos que o cruzamento permite aos pedestres atravessar em diagonal. Você e a Keila acharam graça e fizeram disso nossa eterna piada. Vamos atravessar de esgueio?
Aberdeen é comer macarrão e conversar na casa dos amigos, é visitar o estádio de futebol da cidade e entrar no gramado coberto pela neve, é comer Haggis no pub que já foi igreja medieval e olhar discretamente pelo canto dos olhos você ir ao banheiro corajosamente sozinho e voltar com cara de ter visto um fantasma.
Eu não indicaria pra ninguém ir para Escócia no inverno, não pelo frio, mas porque são poucas as horas de luz e os castelos e museus costumam estar fechados nesta época do ano. Mas nós somos viajantes de oportunidades e como estávamos lá em janeiro, junto com amigos locais, todos devidamente encapotados, o bebê Fábio parecendo um teletubbie, seguimos para nosso passeio nas ruínas do Dunnottar Castle. E ruínas no inverno ainda são mais impressionantes.
Sempre que vou a um castelo medieval fico imaginando como era a vida naquela época. Um mundo de pedra e terra, sem qualquer dos nossos confortos tão banais: água na torneira, eletricidade, janelas de vidro, camas com colchões e cobertores que não eram feitos com pelos e peles de animais e seus parasitas. A vida ali era fria, suja, insalubre e violenta, mas ainda nos desperta curiosidade e fascinação.
Na volta para a cidade, a Louise propõe almoçarmos no Garden e ficamos imaginando que lugar seria esse, até descobrirmos que era um Graal ou um Frango Assado da Escócia. Comemos o onipresente Fish and Chips e comprei seu super casaco pelo preço de uma camiseta no Brasil. Como sempre eu puxando conversa, falando com a moça do caixa, já fluente nos aye and wee, aprendi uma expressão tipicamente escocesa: "whit’s for ye will no’ go past ye". Quer dizer que o que tiver que ser, será. Mais ou menos isso. Ela me falou também algo em gaélico, mas não consigo mais me lembrar.
As lembranças de viagens nem sempre são glamurosas. Engraçado que no meio de tanta história, museus, castelos e casas antigas, quando falamos de Aberdeen, lembramos sempre do Haggis, do Garden e das travessias de esgueio pela rua principal.
Ainda não tínhamos andado pelas noites assombradas de Edimbra e ido ao encontro do monstro do Loch Ness nas terras altas. A viagem estava só começando.
Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti durante suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.