Existe melhor lugar para tentar entender a vida do que num velório?
Sobre enterros e outras coisas é um conto escrito por Leandro Samora e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
SOBRE ENTERROS E OUTRAS COISAS
Contrariando a literatura, fazia sol durante o velório. Um sol ardido e incômodo, numa anormalmente quente tarde de agosto. E o clima não era a única anomalia proverbial na cena: ninguém vestia luto. As roupas eram comuns e coloridas. Não se chorava, embora a tristeza fosse evidente. A filha lamentava, é claro, mas, conhecedora das leis da vida, se consolava com a jornada do pai. A esposa se cercava de amigos e pessoas queridas. Velhos conhecidos, de outros tempos e épocas, se reuniam para constatar a passagem do tempo; e para lembrar. E como lembravam! Com sorrisos que oscilavam de alegres para tristes com a mesma agilidade de um piscar de olhos. Eles se lembravam de quando o mundo era outro, diferente; de uma época em que a morte era uma coisa distante, que acontecia só com aqueles que eles conheciam de vista, da vizinhança.
Tem sempre alguma coisa que me incomoda em velórios e não é apenas pelo óbvio de haver um corpo sem vida no meio da sala. É que, nesses momentos, me bate aquela inadequação social, velha companheira minha. Eu entendo que existe um protocolo social e esses protocolos sempre me fascinaram na mesma proporção em que me assustam. Meu maior medo ao precisar sair para o mundo e me postar como uma figura em algum nível relevante e interativa, sempre foi o de não saber as regras para cada situação. Quando a pessoa do outro lado da linha disser “Alô, como posso ajudar?”, eu me apresento e explico o problema todo, em detalhes, ou só respondo o básico que ela precisa saber? E se ela perceber que eu não tenho ideia do que estou fazendo? “Alô, viu, desculpa, é que é minha primeira vez desbloqueando um cartão e...”, impensável. Se eu der sinal e o ônibus não parar; como é que eu vou olhar as pessoas no ponto depois disso? Pior, e se o ônibus estiver saindo no momento em que eu chegar ao ponto… eu saio correndo, ou espero o próximo? Se eu sair correndo e não alcançar, as pessoas vão me julgar. Que vergonha! Tudo bem eu chamar o garçom e dizer que o prato veio com algum problema? Tudo bem eu pedir aquela comida diferente, que quase ninguém pede?
Se eu estiver em um velório, é ok sorrir? Eu mantenho as mãos sobrepostas em frente ao corpo e a cabeça baixa? Vou até os parentes e dou um abraço, aperto as mãos? Digo “sinto muito”? “Meus pêsames” é um pouco demais, literário demais. Ninguém diz “meus pêsames” na vida real, assim como nenhum bandido usa todas as regras gramaticais corretamente. “Peguem-no!”? Fala sério.
Existe toda uma mise-en-scène num velório. Regras que eu não sei seguir. Eu não consigo abrir o coração e ser totalmente sincero porque, olha que ironia, soa artificial. Então, eu fico ali quietinho no meu banco, mãos cruzadas sobre o colo, observando, mimetizando. Mas é difícil. Meu incômodo pela minha inadequação quase supera o sentimento de pesar. E, então, tudo fica mais difícil:
A filha conversa comigo. Faz uma brincadeira com o tamanho da minha barba, evocando uma hirsuta figura histórica.
Os velhos conhecidos estão conversando entre si, tristes, mas também alegres.
As pessoas vestem roupas coloridas.
Não está chovendo. Muito pelo contrário.
Por que será que ninguém está seguindo o roteiro e, ainda assim, tudo parece estar dando certo? Bom, “certo”, é claro, dentro das devidas possibilidades.
E então, por entre todos os que estavam ali para velar, surgem dois rapazes com uma sobre-roupa verde escuro, como aqueles aventais usados pelos cirurgiões, só que num tecido mais grosseiro. Os rapazes são educados, mas eficientes. Sem cerimônia, apanham a tampa do caixão de detrás de uma coroa de flores e, com os cravos dourados, selam o receptáculo. Minutos depois, ele já está depositado sobre um carrinho e a comitiva se prepara para a cova.
Os homens de verde são uma quebra no protocolo. É como ver uma peça de teatro dos bastidores. Quando a comitiva se pôs a andar, o sino badalou, tristonho, uma meia dúzia de vezes. Seu lamento metálico retumbou sólido e foi se dissipando aos poucos, nos túmulos lá embaixo, deixando um eco de vazio nos corações. Mas quem estava lá fazendo o metal gemer não foi um vigário solene, todo de preto, chapelão e crucifixo no pescoço.
Foi um rapaz de verde, com protetores auriculares que fechavam as orelhas inteiras. E ele estava contando nos dedos da mão esquerda o número de badaladas que já havia dado. Ele estava solene, sim, mas com aquele ar de enfado que todo mundo tem numa segunda-feira. Porque era uma segunda-feira, e, surpresa!, aquelas pessoas de verde estavam apenas trabalhando. Prosaico, sem poesia. Aquilo era o trabalho deles, da mesma maneira que preencher planilhas e dar telefonemas agora é, de uma maneira que eu nem sei como cheguei lá, o meu. Travar um caixão é levantar requisitos com um usuário em dúvidas. Tocar o sino é pegar o telefone e perguntar “e aí, já fez aquele teste?”.
Quando a gente é criança, acha que os adultos sabem de tudo, inclusive, como agir corretamente em cada situação. Também pensa que tudo tem um significado mais profundo que nós ainda estamos por descobrir e que o mundo, então, é coberto por uma aura de segredos e protocolos que sustentam em suas costas toda a estrutura social.
Talvez a minha inadequação em frente às coisas mais prosaicas seja um impaciente grito da Natureza, me convocando ao amadurecimento. O único problema é que, apesar de tudo, está tão bom aqui…
Esse conto foi escrito por Leandro Samora para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.