Baseado em fatos imaginários reais, não só de um, mas de vários casais.
Metades é um conto escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
METADES
Era um dia de festa. Você poderia perceber isso na decoração da casa, grande demais para as duas pessoas que moravam lá, mas que agora parecia pequena para tantos convidados. A leveza também estava presente nos sorrisos, diante até das brincadeiras mais pesadas dos primos esquisitos. Crianças pareciam brotar de todos os cantos, sempre com um joelho sujo – quando não os dois – e o nariz escorrendo, fazendo o que elas mais gostam: deixar os pais malucos.
Era um dia de festa. Mas não qualquer festa. Estavam todos reunidos para celebrar a união do casal mais improvável que já existiu: os donos da casa. Não vem ao caso relatar como eles se conheceram, mas o fato é que logo nas primeiras conversas eles se aceitaram como opostos.
Enquanto ela era muito ativa, ele era calmo. Um mudava de opinião de cinco em cinco minutos; já o outro raramente fugia da rotina por vontade própria. Bolacha e biscoito. Flamengo x Fluminense.
Entende agora porque eu falei que era o casal mais improvável que já existiu? Mas, contrariando todas as especulações, eles tiveram uma vida inteira juntos. Criaram três filhos, incontáveis cachorros e muitas expectativas. Os filhos cresceram e lhes deram netos. Os cachorros morreram e foram enterrados no quintal. E as expectativas? Bem, as expectativas eles mataram num estilo de vida inusitado onde cada dia era uma surpresa.
Isso não quer dizer que tudo tenha sido sempre fácil. Eles brigaram muito. Ele, inclusive, saiu de casa quando ela estava grávida do segundo filho. Mas, no fim, eles sempre faziam as pazes sem saber muito bem porque haviam brigado pra começo de conversa.
Nunca chegaram a casar de fato. Não viam necessidade pra formalizar um ato que suas almas já consideravam consumado. Mas, agora, depois de 50 anos juntos e com a vida caminhando para seus finalmentes, eles resolveram fazer a coisa direito, só pra ver se ia fazer alguma diferença.
A festa foi preparada pelos filhos durante o ano todo e, até agora, tudo vinha correndo dentro do planejado. A comida estava ótima e farta. Bebida não faltava. Até os doces ainda estavam espalhados por uma das mesas.
A cerimônia acontecera duas horas antes, ali mesmo no jardim em frente à casa. Quem celebrou foi um amigo de longa data do casal, que se ordenara padre depois de inúmeras desilusões amorosas. Fora simples, mas emocionante.
A noiva, sempre eloquente, fez um grande discurso na hora de recitar os votos. Falara como era difícil conviver com ela mesma, e passara a descrever uma série de defeitos, físicos e psicológicos, crônicos e adquiridos com o tempo. Já o noivo, mais contido, surpreendeu a todos revelando como conseguira aguentar todos aqueles defeitos descritos alguns minutos antes. Era bem simples, na verdade: ele amava cada um deles, por fazerem quem ela era.
É, realmente fora emocionante. Agora, eles estavam de mãos dadas, sentados no balanço, aquele pendurado na árvore que plantaram 50 anos antes. Finalmente casados, olharam um para o outro e tentaram achar algo de diferente, ver se aquela simples troca de sims era assim tão importante. Perceberam, quase ao mesmo tempo, que realmente algo havia mudado, não por causa do ato oficial, mas apenas pela celebração de todo o seu tempo juntos. Eles não eram opostos, e sim metades.
Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.