Canoa Coletiva | Iradex

Canoa Coletiva

Pequenos instantes mágicos fazem a vida mais doce. São nessas horas que a felicidade emerge e toma conta de nosso ser. Um amigo tenta reconstruir - pura e simplesmente pela imaginação - um evento contado por uma colega distante: a prática do rafting.

Canoa Coletiva é um conto escrito por Caê Carvalho e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


CANOA COLETIVA

Ah, moça...

Esperava muito mais quando li a primeira linha do seu e-mail. “Massa” foi debandar-me pra Barra e ficar com a galera, comer uns petiscos, tocar violão, papear. Cruzar um rio numa canoa coletiva – nome muito mais fácil que “rafiti” – é espetacular, ainda mais no último dia do ano! Realizar tal proeza necessita d’uma narração mais profunda do que “eu fiz rafting, foi massa! Sabe o que é?”. Requer uma descrição minuciosa de Tolkien e/ou poético simbólica de Dostoiévski. Se eu te conhecesse um pouquinho mais me atreveria a descrever esse momento sob sua ótica, mas não ouso, visto que há bem uns sete anos não nos falamos. Contudo, contarei do meu ponto de vista, como se eu estivesse lá do seu lado.

Devo dizer que entre os dois autores, privilegio o russo; até porque não pretendo me estender, apenas me atinar na beleza daquele momento. Em “Noites Brancas”, Dostoiévski fecha o romance com a tenaz pergunta feita pelo personagem central da trama, pois se redescobriu num único e mágico instante de felicidade. E "não será isso o bastante para preencher uma vida?". É claro que é um exagero poético daquele patético e sofrível burocrata de baixo escalão, numa rotina morta sem nenhum ar de alegria, atravessada pelo sonho e lembrança de uma paixão que faz esse personagem minimamente feliz. Reflete, igualmente, a vida do próprio autor com o fim de um romance. Assim, pergunta a si mesmo se o que viveu já não basta, já não vale por uma vida. Ah... a pureza e a delicadeza do amor além de mansidão o tornam um tiro de canhão e quem amou – e foi correspondido – pode sorrir contente ao se lembrar desse amor que, de alguma forma, ainda traz felicidades nesse recordar, como se pudéssemos sentir o cheiro de sua antiga pólvora. Mas, de todo esse prelúdio, o que ressalto é a fruição que percorre o corpo e traz alegrias, tanto em fatos ordinários quanto nos extraordinários. É por essas horas que se vale a pena viver. Enfim, já me alonguei e ainda nem comecei...

“Já nem escuto mais o que os instrutores dizem. O capacete amassa meu cabelo, mas é necessário. Agora, esse colete? Fico parecendo uma empanada. O pior risco de cair da canoa não é o de se afogar – com ou sem colete; quem não sabe nadar? – mas alguma pancada em alguma pedra, certamente. Percebo no fim das contas e a contragosto que sou tão vaidoso como todo mundo e esta é uma difícil constatação. Entro na canoa e a água, na fração de segundo anterior, banha minha perna. Por mais que a Chapada seja minha segunda casa, não me acostumo com aquela água gélida de rio, jamais! A sensação de quando estive no Peru é a mesma: mil facas fincando na carne. Paradoxal que nas terras do Rei-Sol quem pareça dar as cartas é o Titã Crio, representante do frio e do inverno na mitologia grega. Mas diferentemente do que acontece no berço de Platão quando Crio perde a batalha pra Zeus, no confronto contra a máxima divindade Inca, Crio dá-lhe um sacode bem dado no Rei-Sol. Penso em Lima encoberta por cinza todos os meses, todos os anos, sem o Rei-Sol se impor nem ao meio dia. Engraçado como uma – congelante – fração de segundo pode comportar tantos pensamentos sem deixar de ser, entretanto, uma mera fração de segundo. Mas estou animado demais ao me entregarem o remo pra sentir qualquer frio. Lembro que há uns oito anos não uso um troço daquele e não era dos mais hábeis, sempre costumava perder pra meu primo em disputas de corrida no caiaque em nossa tenra idade. Olho a paisagem ao redor e me conecto com cada folha, cada rocha, cada ser daquele lugar. A despeito da agitação que toma conta dos demais membros da canoa nos minutos que precedem a aventura, sou apenas a paz. Meu coração pulsa junto com os batimentos da Terra e minha respiração pausada, tranquila, parece me unir ao Cosmo.  Minha serenidade contagia o nosso grupo e a ansiedade, correlata da tensão, é subtraída pelo simples prazer de estarmos todos ali naquela canoa, por estarmos prestes a realizar um evento tão singular em nossas vidas. A tranquilidade não anula o frio na barriga, mas ele já não assusta e a partir dali somos um só corpo. Começa. Aqui os pensamentos já não têm mais contorno e o que comanda é a pele. De tão excitado nem sinto a minha beijar a tua. A emoção transcende tudo aquilo. Já não sinto frio com as gotas que me atingem e nem ouço o grito que as meninas – inclusive o seu – deram na primeira (micro) queda d’água. Aliás, apenas presumo que houve gritos. Eu, membro daquela engrenagem que se contorcia e fluía sob o manto escuro do rio, quase não estava mais ali. Quando a canoa, por um motivo ou outro, em uma pancada ou outra, queria sair da água e flertava com o ar, era como estender a mão e tocar em Deus e entender seus mistérios. Aquilo tudo durou tão pouco, mas permanece à eternidade. Em mim. Em ti. Em nossos companheiros. O prazer das 'pequenas felicidades'. Como ver a alegria do cãozinho ao chegar em casa. Como um beijo bom. Como morder um caqui".

Ps1: Ao ler minhas palavras, espero que este seja, para ti, um momento de onde as “pequenas felicidades” irradiam, tomam nosso corpo e trazem consigo um doce prazer.

Ps2: “Pequenas felicidades” é o nome de um conto de Danuza Leão – e batiza também a própria coletânea a qual está inserido – que discorre sobre os momentos mundanos que nos enchem de felicidade. Perguntando se o que descreve produz ou não este amado estado de espírito, o que eu mais gosto é este: “sua sogra vai viajar e só volta daqui a três meses”. Felicidade absoluta!

Ps3: Não sei se é em “Noites Brancas” ou em outra quente história do autor de terras frias, mas num dos livros que tenho do russo, em sua capa, há um comentário de Nietzsche: “Dostoiévski é o único psicólogo que pode me ensinar alguma coisa em relação à mente humana” (ou similar...). Com todo respeito ao transgressor Anticristo, uma das características do Super-Homem deve ser a ausência total de qualquer modéstia e uma soberba sobre humana. Aliás, como qualquer Deus.

Ps4: Enquanto escrevia esse e-mail, Flora me perguntou o que eu digitava. Mostrei-a. Ela gostou muito e me disse seriamente: “porque você não faz disso um conto?”. Tenho sorte de ter essa gata comigo e ainda bem que ela não é ciumenta. Já pensou se fosse outra?

PS5: Morder um caqui, fonte de uma felicidade indescritível, é como beijar um Deus. Decerto, Afrodite.

Abraços,

Caetano Assombroso


Esse conto foi escrito por Caê Carvalho para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Caê é geógrafo e faz mestrado no campo da Geografia da Religião. Adora bons enredos e mergulha nas horas vagas em  filmes, livros e desenhos. Também tem uma tara por criar histórias e, além de contos, tem um projetos de livros e histórias em quadrinho. 
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