O que significa conhecer alguém? Em uma família marcada pela ausência, uma descoberta acidental mostra como é fácil construirmos memórias quando afogados na solidão. Basta uma fotografia, um filme, e podemos formar na mente uma lembrança que nos agrada. Mas será suficiente?
O retrato é um belíssimo conto escrito por Moacir de Souza Filho e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
O RETRATO
Não havia proibição declarada de falar sobre Telma; como um acordo tácito, um sentimento que se apreende no ar, sabíamos todos que deveríamos evitá-la. Não se falava de Telma sequer para proibir que se falasse de Telma. Uma visita inconsequente talvez a mencionasse, um parente distante talvez relembrasse alguma história, mas naturalmente a conversa mudava de rumo e Telma retornava para o limbo. De certo modo, creio eu, nossos ouvidos se acostumaram a ignorar o seu nome.
Não foi sempre assim; no começo, ainda sentia-se um mal-estar, uma inquietação. Eu, criança ainda, perguntava por ela. Às vezes, a palavra vinha à mente sem ser convidada, e quando me dava conta ela estava na ponta da língua, as sílabas coçando-me os lábios. Mas aprendi com o tempo, com as reticências, com os olhares enviesados. Aos poucos, esqueci-me que tinha irmã, e Telma desapareceu.
Até o dia em que encontrei o retrato.
Mantinha-o em segredo desde que o roubara da cômoda de vovó. Nem lembro o que fazia remexendo nas camisolas de naftalina, talvez procurasse o controle da televisão, que ela sempre acabava levando pro quarto. O que sei é que deparei com uma fotografia desgastada, dobrada em quatro partes, as bordas meio rasgadas. Há quantos anos esquecida na gaveta? No canto esquerdo, escrito em grafia trêmula, “Telma, 1979”. Tomei um susto. Em pensamento, falei o nome proibido.
Meti o retrato no bolso e só fui admirá-lo mais tarde, trancado em meu quarto. Debaixo da cama, desdobrei o pequeno tesouro e lá estava ela: pequena, rechonchuda, metida num macacão amarelo, encolhida nos braços de papai. Não sorria, tampouco parecia triste; seu rosto redondo tinha certa expressão intrigada, seus olhos miúdos fitavam a câmera com curiosidade. Naquele instante, fixou-se em mim a imagem da criança inteligente, ousada, que anseia decifrar o mundo.
Atravessei a noite mergulhado nos olhos de Telma.
Acordei na manhã seguinte disposto a revelar meu achado. Pulei da cama cheio de ansiedade. Acreditava que, quando vissem a fotografia, papai, mamãe e vovó ficariam tão encantados que Telma voltaria a existir para nós, e de minha irmã eu saberia algo além do silêncio. Meus planos acabaram frustrados pela ausência de vovó no café da manhã que, indisposta, não saíra do quarto. Adiei a revelação; o impacto pretendido só seria alcançado se o retrato fosse apresentado a todos.
A oportunidade que eu desejava só apareceu no jantar. Família reunida à mesa, papai na cabeceira, vovó de um lado, mamãe do outro, e eu encolhido no meu canto, a mão molhada de suor. Tomava coragem, a comida esfriando na minha frente.
― Está tudo bem? Não tocou no prato ― a voz de mamãe me despertou.
Levei a mão ao bolso. Apertei o retrato, preparando-me. Quando ergui os olhos, pronto para revelar a esquecida fotografia, percebi que mamãe não olhava para mim. Ela e papai fitavam vovó, que, imóvel, sustentava o garfo no ar. Eu tinha a fotografia encerrada entre meus dedos, a boca aberta, prestes a dizer o nome, aquele nome, mas vovó levantou-se e nos desejou boa noite. Telma voltou para o meu bolso, terminamos a refeição em silêncio, e desisti de esperar por vovó. Mostraria o retrato ao menos para papai e mamãe.
Mais tarde, aconcheguei-me entre os dois no sofá da sala. Passava a novela na televisão, mas eu só pensava em como apresentar o retrato aos meus pais. Nervoso, procurei algo para me distrair e pôr os pensamentos em ordem; dei com as cortinas da janela. Na brisa noturna, dançavam como se estivessem vivas. Todo o tecido se agitava, mas as extremidades erguiam-se mais altas, lançando-se de um lado a outro, enquanto o topo se mantinha quase quieto. O movimento, porém, começava lá em cima, e as ondas desciam, crescendo em uma trama de pequenas oscilações até chegar às pontas bailarinas. A mais leve flutuação lá em cima era capaz de dar à cortina formas inesperadas.
― Tenho uma coisa pra mostrar.
― Já é o boletim? ― papai riu.
Sorri amarelo. Telma ali, tão próxima de nós, e eu estava tão feliz em tê-la comigo que sentia a necessidade de compartilhar aquele sentimento. Papai encarava-me, sorrindo, pensando ser alguma brincadeira minha. Desviei o olhar para a televisão. Começava um filme, os letreiros amarelos surgindo na tela preta, uma guitarra soando ao fundo. E então apareceu o nome dela, e a voz do dublador ecoou em nossos ouvidos: “Thelma e Louise”. A televisão apagou-se de imediato.
― O que você queria nos mostrar? ― mamãe perguntou, o controle remoto ainda na mão.
Desconversei. Não revelei a fotografia naquele dia, nem no dia seguinte; resolvi guardá-la para mim, apreciando-a em segredo, decorando cada detalhe. Naquela noite, porém, descobri onde poderia ouvir o nome dela. Fascinado, guardei dinheiro do lanche por quase um mês até comprar o filme. Quando todos dormiam, eu me arrastava em segredo para sala, enfiava a fita no VHS e vibrava em silêncio sempre que o nome proibido era dito. Quarenta e nove vezes. Passei a ver “Thelma & Louise” quase todas as noites desde então. Convenci-me que a pequena garotinha da foto crescera tomando a forma da Geena Davis. Por mais que ninguém na família ostentasse os cabelos meio loiros meio ruivos da atriz, aquele sorriso fácil, aquela ingenuidade e, principalmente, aquela voracidade com que ela queria viver – a personagem, não Geena, mas tanto fazia para mim – condiziam perfeitamente com o futuro que eu imaginava para a criança curiosa e aventureira que Telma havia sido. E quando o mundo lhe domou, porque todos nós cedo ou tarde abdicamos de parte da nossa essência para nos misturarmos ao caldeirão de rostos acomodados, ela conseguiu se libertar.
Essa idéia foi crescendo em mim, e sempre que rebobinava o VHS eu acreditava mais nela. Já não sabia tão pouco de Telma: via o seu rosto, ouvia sua voz, conhecia o seu temperamento. Aventureira, obstinada, livre, espontânea. Cresci com a sua presença, aconselhando-me, apoiando-me, e aos poucos fui me afastando da família, onde Telma não podia existir. Até mesmo de vovó eu me distanciei, evitando sua tristeza e alheamento cada vez maiores. Trancava-me no quarto com Telma, e juntos atravessávamos as noites.
Tomei coragem e saí de casa. Não podia mais confinar minha irmã a um quarto apertado; os olhinhos curiosos da fotografia precisavam de largos horizontes. Guiado por eles, deixei a cidade, o estado, e vaguei sem rumo, vivendo de bicos. Nunca me estabeleci em lugar algum, nunca arrumei emprego fixo, nunca me casei. Telma não deixava me alcançar a poeira da vida média.
Estava a centenas de quilômetros de casa quando decidi voltar. Não como um filho pródigo, mas para uma despedida: decidira atravessar a fronteira e percorrer os caminhos do mundo. Apesar de tudo, eu devia aquele adeus à minha família.
Fui tomado por uma profunda felicidade quando vi, de longe ainda, meus pais esperando-me na calçada de casa, ainda que meu peito se apertasse ao lembrar que Telma não poderia entrar comigo. O pacto devia ser respeitado. Mamãe tinha os olhos fundos, e papai perdera o que lhe restava de cabelo, mas pareceu-me que tempo algum havia se passado. Perguntei de vovó.
― Está pior ― o sorriso abandonou o rosto de papai. ― Não nos reconhece mais.
Vovó repousava na sala, em sua antiga cadeira de balanço, magra, miúda, alquebrada. Pedi a meus pais que nos deixassem a sós. Vovó tremia de leve, mirando a televisão desligada com uma expressão diligente, na testa os vincos de quem tenta enxergar algo impossível. Disse-lhe algumas palavras, acarinhei-lhe o rosto, mas ela estava distante, inalcançável.
Senti uma brisa lamber-me o pescoço. As cortinas dançavam ao vento, a mesma dança que me distraiu em uma noite distante, a mesma fluidez, a mesma maré que se avolumava por toda a extensão do tecido. Em que ponto da cortina eu estava agora? Quantas ondas eu produzira? Finalmente, dei-me conta. Levei a mão ao bolso da camisa, onde guardava o retrato que, agora percebia, vovó salvara do esquecimento. Desdobrei-o com cuidado, e não pude deixar de sorrir quando a pequenina Telma surgiu. De joelhos, as lágrimas me banhando a face, tomei a mão frágil de vovó entre as minhas e depositei o retrato, apertando seus dedos.
Vovó me encarava, indiferente e perdida. Beijei-lhe a testa e me despedi do retrato. Ao me virar, ouvi a sua voz pela última vez. Em um sussurro rouco e vacilante, o nome proibido voltava pra casa.
E então percebi que nunca houve Telma para mim.
Esse conto foi escrito por Moacir de Souza Filho para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.