O Dono da Esperança | Iradex

O Dono da Esperança

O dia-a-dia das grandes cidades é tão agitado, que os que vivem à margem da sociedade tornam-se invisíveis.

Passamos alheios ao lado daqueles que lutam pra suportar os desafios da urbe. Mas até esses tem uma história pra contar e um motivo para continuar.

O Dono da Esperança é um tocante conto escrito por Gusta Mociaro e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


O DONO DA ESPERANÇA

Acordo ainda cansado.

Está escuro, mas o silêncio esperado das madrugadas já deixou há muito de ser uma realidade nessas ruas.

Sim, eu durmo na rua, ali naquele papelão. Isso quando meu papelão está ali, né?

Já que acordei, vou aproveitar pra dar uma volta pelas redondezas. Ver o sol nascer, esticar as pernas, e esperar a padaria abrir as portas. Ah, como eu adoro aquele cheirinho de pão fresco. Aquece meu coração.

Quem sabe um dia eu provarei um desses pãezinhos ainda quentinhos.

Enquanto isso, me contento com o amanhecido que o Seu Joca me oferece quase todas as manhãs. É meio borrachudo, duro, mas é melhor que nada.

Minha garganta seca anseia por um pouco d'água. Já não chove há alguns dias e nem as poças espalhadas pela calçada, que geralmente me salvam, estão ali disponíveis.

Pedir? Não, meu orgulho não deixa. Já é um sacrifício aceitar as migalhas do Joca.

Vou ter que encarar uma longa caminhada até aquela pracinha. O sol já está no seu auge, o asfalto cada vez mais quente, mas meus pés já estão acostumados.

Você percebe que está mal na vida quando, até um gole d'água é uma incerteza e um tremendo desafio.

No caminho me sinto invisível. As pessoas passam por mim e desviam o olhar. Não sei se sentem culpa pelo abandono, ou se preferem ignorar os problemas pra não criar obrigações.

Estou triste.

Meus passos curtos fazem aqueles quarteirões parecerem monumentais. O calor e a desidratação castigam, e até minha vista começa a me pregar algumas peças.

Paro na esquina, olho para os dois lados. Olho novamente, e com confiança movo a perna esquerda e BÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!

Sorte que consegui voltar.

Esses motoqueiros surgem do nada, prontos para nos atacar. Cachorro louco é um dos poucos apelidos que eu consigo compreender.

Finalmente avisto meu destino. No meio da praça a água jorra em uma fonte. Dá até vontade de correr pra me esbaldar. Sou tímido. Decido ir no meu ritmo mesmo. Sorvo com vontade e me sinto revigorado.

Olha quem está ali. É o Alf!

Nem sei se esse é o nome dele de verdade. Quando eu grito Alf ele olha. Talvez apenas por educação.

O Alf parece ser gente boa. Vem sempre aqui na pracinha, compra uma pipoca, come um pouquinho, e divide o resto com as pombas. Quando ele me vê, sempre me dá algumas.

Parece pouco pra quem olha, mas só quem está na minha pele sabe a diferença que faz.

Eu gosto do Alf. Queria que ele me levasse pra casa algum dia.

Chacoalho o corpo pra arrumar meus pelos, balanço o rabo de alegria, me aproximo e chamo:

- Alf, Alf!

Um afago na barriga e todos os problemas desaparecem.


Esse conto foi escrito por Gusta Mociaro para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gusta Mociaro é front-end developer e viciado em internet.

Escritor? Nem de longe. Mas um grande fã de boas histórias.

Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.