Será que eles vão rir? | Iradex

Será que eles vão rir?

Atrás do picadeiro um palhaço tenta desesperadamente acertar sua maquiagem, enquanto luta com seu demônio interior.

Será que eles vão rir? é um texto escrito por Wilson Júnior como um execício de literatura, onde deveriam ser combinados elementos de suspense e circo, e que vocês conferem aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.

 


SERÁ QUE ELES VÃO RIR?

— Por que eles não riem mais? — questionou-se com tristeza enquanto vestia a roupa colorida. — O que aconteceu? — pensava, amargo, tirando da mochila puída um pequeno estojo de maquiagem.

O camarim era mal iluminado; uma solitária lâmpada amarela no topo do grande espelho manchado mal afastava a penumbra, fornecendo luz apenas para que o sujeito não se vestisse na escuridão completa.

— Pelo menos a escuridão esconde a imundície que toma conta deste lugar — falou para si mesmo,  olhando em volta e sentindo o ambiente opressor agravar sua tristeza.

Começou a maquiagem, primeiro a pasta branca, ao redor dos olhos, nas sobrancelhas e bochechas, um pouco de pó para secar a pasta, depois o blush azul nas bochechas, o batom roxo destacando a imensa boca. Por fim, fez a gota azul debaixo do olho esquerdo, era uma maquiagem de palhaço triste, refletindo aquilo que ia em seu coração.

— É por isso! — exclamou com uma pontada de felicidade encarando o rosto estranho no espelho. — É essa estúpida maquiagem triste! Como posso levar felicidade vestindo uma máscara de tristeza? — constatou satisfeito.

Com o espírito reanimado, tomou um pano sujo e embebeu em removedor, esfregando com força a pele do rosto para retirar a expressão negativa pintada nela. Esfregou como se quisesse limpar a tristeza do espírito com o remover de maquiagem. A pele ardia, mas estava limpa, e ele poderia começar de novo.

Mais uma vez iniciou o processo, primeiro a pasta, depois o pó. Mas dessa vez o blush era rosa, dando um ar de jovialidade e ânimo à nova maquiagem. Pegou o baton vermelho para dar o toque final:  pintou a boca e fez uma pequena bola no nariz.

Olhou-se no espelho por alguns segundos, testou um grande sorriso, mas seu rosto se deformou em uma máscara de tristeza.

Lembrou-se das risadas da noite anterior e pensou que eles riam sim, mas não das coisas divertidas que fazia; riam por que o achavam patético, todos acham palhaços patéticos hoje em dia. Ou melhor: não riam, zombavam.  Zombavam dele e do que ele representa. Zombavam do passado.

— Malditos comediantes de stand-up! — disse em voz alta, lembrando-se das entrevistas. “É um tipo diferente de humor”, “é um humor de cara limpa” diziam de maneira presunçosa, como se tivessem inventado o “fazer rir”. Eles apenas humilham os outros. O palhaço não, o palhaço ri de si mesmo, traz o humor das coisas simples e inocentes.  Enquanto pensava, ele sentia a raiva crescer dentro de si. Foram esses metidos que ensinaram o escárnio ao público.

Encarou-se mais uma vez, observando o rosto alegre no espelho. Testou de novo um sorriso, e se assustou com o que viu. O rosto de um psicopata estava ali, escondido pela maquiagem, mas podia ver seus olhos assassinos e sua boca vermelha com dentes pontiagudos. No susto, pegou o pano com removedor e esfregou o rosto com violência. Sentiu a pele arder dos solavancos, mas só parou quando a máscara tinha desaparecido por completo.

— Maldito John Wayne Gacy e maldito Stephen King! — gritou para o espelho, irritado e a luz tremeluziu. — Psicopata maldito que desvirtuou a pureza de uma figura infantil, e autor oportunista que fez sua história ganhar proporções mundiais. Aqueles puros de verdade para rir de nosso humor já crescem com um pavor psicótico por conta dessa imagem terrível — palestrou em sua mente cheia de ódio.

Ele não podia desistir. Talvez tivesse aplicado um tom errado de vermelho na boca e no nariz. Queria usar o vermelho, a cor da paixão que ele tinha pelo trabalho e pelas crianças. Ao pensar nas crianças, uma gota de suor desceu gelada pelas suas costas, e ele sentiu um frio na espinha. Balançando a cabeça de um lado para outro, afastou os pensamentos.

Precisava voltar ao trabalho. Era algo na maquiagem, e o pensamento se repetiu com uma sensação de déjà vu. E mais uma vez ele voltou ao processo. Tirou o grande estojo de dentro da bolsa, olhou para ele orgulhoso, cheio de cores contendo infinitas possibilidades. Primeiro a pasta, depois o pó, por fim as cores, depois ódio, medo e removedor.

Ele perdeu a noção do tempo, das repetições. A pele do rosto já esfolada e irritada, misturando pequenas manchas de sangue aos resíduos de maquiagem no pano sujo, mas a obsessão turvava sua percepção de dor. Criava diferentes pinturas, mas elas não o satisfaziam, eram tristes demais, ou loucas, dementes, agressivas. Experimentou outras cores, outros desenhos, combinações que no fim eram arrancadas com violência.

— É o vermelho! Preciso acertar o tom do vermelho — e sua obsessão cíclica voltava para o ponto de partida.

E no vermelho ele testou todos os tons, combinou com outras cores, e a sucessão de erros o irritava cada vez mais. A roupa colorida já estava em pedaços no chão, vítima de um ataque de fúria, seu corpo magro e marcado agora tremia no frio do ambiente mal climatizado. As mãos sujas sacudiam enquanto ele tentava ajustar a última combinação em seu rosto. No momento final, o solavanco de frio fez com que um risco borrasse tudo. Mirou o espelho manchado, olhando a máscara aplicada sobre a expressão furiosa. Tentou forçar um sorriso, mas o risco borrado o deformava, a ira em seus olhos não deixava passar felicidade. Aquele vermelho era fajuto, não representava sua paixão. Numa explosão de cólera sua mão direita espalmada foi de encontro ao espelho.

— Maldito! — gritou em desespero e amargura sentindo o vidro lacerar a palma de sua mão. — Você mente, o rosto está perfeito! — berrava no ímpeto da loucura.

Olhou para o filete de sangue que escorria da mão, depois para o espelho que agora refletia pequenos fragmentos estilhaçados da sua imagem. O sangue brotava em seu tom vivo e escarlate. Aquele era o vermelho que ele queria. Pegando uma paleta, pressionou o corte para que o líquido fluísse com mais força. Apenas depois que a paleta se encheu, enrolou um pano na mão ferida para estancar o sangramento.

E mais uma vez o pano sujo raspou a pele cansada para que o processo fosse reiniciado. Não havia mais removedor, então ele tinha que usar água e mais força. A violência era tamanha que a pele já começava a se deformar, mas ele não se importava, pois a pele sem maquiagem era a verdadeira máscara. Para além do rosto do seu palhaço, o resto era a ilusão.

A pasta, o pó, o blush, o sangue. Como era lindo! Passava o pincel ao redor da boca, marcando-a com o líquido viscoso, revelando suas tonalidades na aplicação. Ao fim, estava feliz. Era o vermelho. Ele olhava suas pequenas cópias com satisfação. Com certeza, eles vão rir.

Realizado, buscou as vestes rasgadas no chão e iniciou o concerto. Não foi difícil, afinal ela já era uma colcha de retalhos. Quando ficou pronta, voltou-se mais uma vez para o espelho apenas para o terror tomar conta de tudo. O lindo vermelho estava arruinado, tinha virado um marrom seco e sem vida. Ele buscou a paleta e ela estava igual.

— Não, não, não! — chorava e as lágrimas que escorriam terminavam de arruinar a maquiagem perfeita. Desabou no chão, convulsionando em um choro de frustração, tristeza, ódio.

— Calma, eu só preciso de mais! — pensou entre soluços. Imediatamente, o pranto se tornou uma grande gargalhada. Eles vão rir!

Levantou foi até o espelho. Arrancou um grande caco do vidro quebrado com a mão esquerda, e fez um corte profundo no pulso direito fazendo com que o vermelho corresse farto. Usou um pote para coletar a preciosa tinta e  depois enrolou um pano no pulso para estancar o sangramento.

E o processo foi reiniciado. Mais pasta, mais pó, mais blush e mais sangue. E para seu desespero não conseguia segurar o pincel com a mão direita. Havia perdido o controle dos dedos. Não se abateu e iniciou o procedimento com a mão esquerda. Seria mais lento, mas ele conseguiria.

O vermelho era espalhado primeiro em uma metade do rosto e depois na outra de maneira lenta e atrapalhada. Quando finalizou, conferiu o reflexo fragmentado. Um choque percorreu seu corpo amortecido. A primeira metade da maquiagem já estava corrompida, naquele mesmo tom escuro. Seca, sem vida e sem graça.

— Será que eles vão rir?

Mais pasta, mais pó, mais blush e mais sangue.

 


Esse conto foi escrito por Wilson Júnior. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor deverá ser consultado.


Sobre o autor: Wilson Júnior é estudante de História e fã de literatura fantástica. Somente após vinte e seis anos criou coragem para colocar para fora suas aspirações literárias. É também membro fundador do ainda desconhecido grupo Escambau de Criação Literária. 
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