Garra Rufa é um curta de animação resultado de um trabalho em equipe de uma das turmas do Sheridan College, no Canadá. Sob a supervisão e orientação de seu professor Tony Tarantini (veterano da animação, tendo trabalhado em projetos famosos como Babar, Rupert e Ursinhos Carinhosos), os alunos produziram um vídeo de apenas 4 minutos (mas que gera anos de reflexão) sobre o dia-a-dia de um psiquiatra que trata as pessoas através das palavras, transformando os problemas dos pacientes em soluções dentro de sua própria cabeça e os devolvendo de uma forma diferente.
O título não é à toa, já que Garra Rufa é o nome científico do Peixe Médico (Doctor Fish), muito comum em rios no Oriente Médio. Ele leva esse nome por ser usado em tratamentos medicinais e estéticos, uma vez que ele se alimenta de pele morta, deixando a pele “boa” intacta.
Sobre a linguagem
O peixe é utilizado como alegoria pra mostrar como a linguagem é uma coisa impressionante, e como ela é esse delicado instrumento que utilizamos para interagir com o mundo, traduzindo em sons ou sinais o universo infinito que trazemos em nossas cabeças. Sem ela, talvez passássemos cada segundo de nossa existência voltados apenas para dentro, perdidos infinitamente em pensamentos que nunca conseguiriam se libertar.
No entanto, a aquisição da linguagem, ou o seu desenvolvimento (como diria Chomsky), é um dos mistérios que a ciência luta até hoje para explicar. Por enquanto, se a gente parar pra pensar bem, a linguagem ainda pode ser encarada como uma espécie de mágica. E, como toda boa mágica, ela nos dota de um poder, uma potência, que pode ser usada tanto para o bem, quanto para o mal.
Na literatura encontramos vários exemplos que nos tentam mostrar o quanto podem valer as palavras. Leonel Caldela em seu O Inimigo do Mundo, faz um demônio albino poderosíssimo se rebaixar ao nível dos meros mortais que ele despreza simplesmente para aprender a ler, pois acredita que aquela habilidade de transformar pensamentos em riscos num papel é mais poderosa do que as que já possui. Já Isaac Asimov em um de seus contos (Profissão, contido no livro Nove Amanhãs) relata de forma sucinta, porém riquíssima, como é a vida das pessoas antes de terem o poder de dominar palavras, e como suas realidades mudam após adquirirem essa habilidade, depois do chamado Dia da Leitura.
No fim das contas, o que esses dois autores querem nos mostrar, ainda que separados por quase um século, é que a linguagem, ou as palavras, modificam o mundo tanto quanto as ações. E isso não é pouca coisa.
Complexo de Pagliacci
O interessante é que, por mais simplório que seja o enredo do curta (e põe curta nisso!), mesmo enquanto vamos assistindo, inúmeros são os questionamentos que vão surgindo na nossa cabeça. O primeiro que surgiu na minha (e que agora eu compartilho com vocês por causa do maravilhoso poder das palavras! =D) foi uma associação direta que fiz do curta com uma das minhas passagens favoritas, de um dos meus quadrinhos favoritos.
É a cena de Watchman em que Roscharch conta uma história enquanto se desenrola a morte do Comediante. E ela é mais ou menos assim:
“Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Diz que se sente completamente sozinho em um mundo ameaçador onde o que está à frente é vago e incerto. O médico diz: ‘O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade esta noite. Vá e o assista. Isso o deverá lhe animar.’ O homem irrompe em lágrimas. Diz: ‘Mas, doutor... eu sou Pagliacci.’"
O que Alan Moore descreve nessa passagem não é nada mais do que a condição humana de dificilmente seguir seus próprios conselhos, mesmo conseguindo traduzir pensamentos em palavras e transformar problemas em soluções dentro da mente.
Nesse sentido, precisamos de uma confirmação. Precisamos sempre ouvir do outro, algo que muitas vezes já até temos dentro de nós mesmos, mas que de certa forma, por estar recluso em nossas mentes, não serve.
O mal do qual Pagliacci padece não é exclusivo dele. No fim das contas, é sempre mais fácil ajudar os outros do que a nós mesmos. Somos todos Pagliacci.