Quando aprenderemos tudo sobre a morte? Como aprenderemos? Depressão. Dor. Falta. O vazio daquele que parte. O que é realmente deixado? Qual o fim daqueles que olharam para o defecho da vida de uma pessoa querida?
Chevy 62 é um conto lotado de referências, escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto será publicado em 3 partes, sempre às terças-feiras a partir de hoje, 7 de julho, até o dia 21 de julho.
SUMÁRIO
- Parte 3 - O jardineiro galês
HENRY
Mais de dois mil anos de civilização e ainda não sabemos lidar com a morte. O gosto ainda é amargo na boca; o soluço ainda é preso na garganta; o vazio ainda corrói as entranhas. Tanto nos apegamos aos vivos que esquecemos o detalhe de que depois de mortos eles não precisam mais de nós. São apenas memórias. Algumas boas; outras ruins; outras péssimas. Mas apenas memórias, nada mais.
Cada um de nós traz no fundo de si um pequeno cemitério daqueles que amou.
Tudo isso ela pensa enquanto cruza os portões do cemitério. E não pela primeira vez, observa que ali não impera o branco. Muito menos o preto. Ali é o reino do cinza. Não importa o horário, o dia, a estação. Sempre ao cruzar os portões do cemitério ela é inundada por um mar de cinza. Estéril. Melancólico. Opressor.
Em todas as vezes surge o mesmo questionamento: será essa uma regra no ramo dos cemitérios? Talvez um artifício para lembrar a todos que o adentram o peso e o significado do que encontrarão mais adiante? Infelizmente ela não tem meios de averiguar sua teoria. Nunca entrou em outro cemitério além desse, que abriga os dois pedaços que faltam de si.
O primeiro pedaço chamava-se Henry e fora seu único filho. Morrera duas semanas depois de completar 18 anos, mas seria sempre seu pequeno diabinho. Ironia ou não, foi atropelado pelo carro que idolatrava, um Chevy 62. Consegue lembrar a exata entonação da voz que ainda falhava um pouco, tentando ganhar contornos de homem, recitando o slogan do carro: “Tão confiável que poderia levar você a qualquer lugar, até à Lua!”. Alguns anos depois o homem realmente foi à lua, mas não num Chevy. De toda forma, ele não estava mais lá para ver.
O motorista estava bêbado. Ela não acompanhou o julgamento, mas disseram-lhe depois que ele foi condenado a 18 anos de prisão; um para cada ano que Henry vivera. Mais uma ironia. A defesa conseguiu livrá-lo da pena de morte e da perpétua alegando que a embriaguez fora causada por um momento crítico na sua vida, um trauma que o deixou completamente desnorteado. Nunca soube que momento fora esse, mas faria alguma diferença? Tiraria o gosto amargo da boca; o soluço preso na garganta; o vazio corroendo suas entranhas?
Foi somente depois da morte de Henry que teve seu primeiro contato com cemitérios. Seus pais estavam enterrados do outro lado do mar, juntamente com outras milhares de famílias. Nunca tivera vontade de reviver esse passado, que deixara ser levado pelas areias inclementes do tempo. Mas com Henry era diferente. Ele não era só sangue do seu sangue. Era algo mais. Muito mais.
Começara indo três vezes por ano: no dia do aniversário dele; no dia do acidente; no dia de Finados. Não era religiosa, então não sentia verdadeiramente uma obrigação de ir nessas datas. Ia porque não via outra atitude possível. Parecia o certo a se fazer.
Não realizava rituais. Não rezava. Não chorava. Só ficava ali sentada olhando para o que restara do seu pequeno diabinho: uma lápide simples com três nomes, duas datas e os dizeres “Don’t think twice, it’s all right”.
Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.