"Alguma coisa então aconteceu dentro dele: algo misterioso e definitivo que o desenraizou do tempo presente levou-o à deriva por uma região inexplorada de recordações."
Meu reveillon não prometia ser nada bom. Estava tão desanimado que neguei participação até no tradicional Bingo do Batman (entendedores entenderão). Procurando algo diferente, e não encontrando, me restou a única melhor coisa que eu sei fazer: ler. Mas daí surgiu outra importante questão, ler o que?
Não podia ser qualquer coisa, até mesmo porque o objetivo era sair da fossa. Olhei minha estante e nada parecia convidativo. Foi aí que lembrei de um dos melhores momentos de 2014. Em uma edição do Clube do Livro em que participou a autora cearense Socorro Acioli, enquanto a gente falava da sua relação com o escritor Gabriel Garcia Márquez, ela mencionou que todo ano a primeira coisa que fazia era ler o Cem Anos de Solidão. E minha decisão estava tomada.
Como fazia um certo tempo desde a última vez que tinha lido, tive um pouco de dificuldade pra achar minha cópia. Depois de procurar feito um condenado e já prevendo que meu humor ia ficar pior do que já estava, descobri que tinha emprestado pra minha prima. Depois de resgatada a bendita encadernação azul da Record/Altaya, me muni dos elementos básicos de sobrevivência no quintal: aparelho de mp3 (pros fogos e barulheiras afins), raquete vermelha do poder (pras muriçocas) e um pacote de jujuba (pra fome), e me instalei na minha rede pronto pra passar o Reveillon em Macondo.
Comecei pouco antes da ceia, ao som de Rodriguez (que inclusive ainda estou escutando enquanto escrevo isso) e com a companhia de uma simpática briba (lagartixa pra você que não é cearense) que ficava ali esperando eu matar as muriçocas.
De início, senti apenas como se estivesse reencontrando com velhos amigos ou ouvindo histórias da tenra infância. Estavam lá todos os Aurelianos e os José Arcadios; as Remédios, Úrsulas e Amarantas; os ciganos com seus ímãs, tapetes voadores e homens cobra; bem como as doenças da insônia e do esquecimento, os galeões no meio da floresta e os peixinhos de ouro.
Mas à medida que as páginas foram passando como um borrão, e com a elas a noite de Reveillon, fui adquirindo um entendimento muito mais profundo dessa espetacular obra (que só não é a que li mais vezes porque um tal de Victor Hugo resolveu escrever um livro chamado Os Miseráveis).
Novas Interpretações
Mais do que um relato fantástico das várias gerações de uma família de loucos, que acompanham a fundação e o desenvolvimento de um pequeno vilarejo chamado Macondo, Cem Anos de Solidão é um verdadeiro tratado de psicologia humana.
Nossos medos, desejos, vícios e, principalmente, nossos conflitos internos, são expostos sem pudores pelo mestre colombiano. Com uma delicadeza que beira à poesia, ele nos leva facilmente do riso às lágrimas com diferença de algumas linhas. Impossível não se identificar com algum (ou vários) dos causos ou descausos narrados.
Os personagens são construídos de forma a terem várias camadas expostas durante a narrativa, que muitas vezes deixa de ser linear e passa a voltear, como se o tempo fosse dobrável feito uma folha de pergaminho de Melquíades.
A solidão não está presente apenas no título, mas é na verdade o elo que une as pontas soltas da história. É praticamente algo palpável. Não é algo ruim. É uma maneira de ver a vida do que uma doença ou mazela. Uma calma no olhar.
Alternando entre a leitura, a reflexão e algumas idas ao banheiro, comecei este ano melhor do que terminei o anterior. Graças à Socorro, que me apresentou um hábito de ano novo que agora vou roubar, e do meu genial xará, que me ensinou que solidão não é necessariamente sinônimo de tristeza.
Afinal de contas, a gente nasce e morre sozinhos. O grande lance da vida é em como e com quem a gente escolhe preencher a nossa solidão nesse meio tempo.