Sucesso de público, Avatar: O Último Dobrador de Ar (1: também conhecido como Avatar: A Lenda de Aang) (2: esqueça a temível adaptação para o cinema) cimentou a carreira dos seus criadores, Michael Dante DiMartino e Brian Konietzko. Era tudo que eles precisavam para cometer uma das maiores ousadias da televisão. Por que, veja bem, Avatar era um desenho infantil e talvez aqueles que fazem o canal Nickelodeon esperavam que sua continuação fosse destinada ao mesmo público. Acontece que os fãs de Aang cresceram e seus criadores resolveram que as próximas histórias do seu universo também cresceriam. Não é exatamente a medida mais inovadora do mundo, J. K. Rowling já tinha feito isso com seu maguinho inglês, para citar apenas um exemplo. Mas, muito além de Harry Potter, Korra trouxe para a tevê, num canal destinado para crianças e adolescentes, discussões que são tabus em outras obras do gênero.
Tecnicamente falando
Em quatro temporadas de treze episódios, A Lenda de Korra é uma animação acima da média, como foi A Lenda de Aang, mas com diversas melhorias. A movimentação de ação, que já chamava atenção em Aang (que por sua vez lembrava bastante o animê Naruto), ficou ainda mais bonita. A inclusão de diversos elementos digitais no desenho animado mais ajuda do que atrapalha. Em Korra estes elementos dão um tom steampunk à história, algo que já tinha sido esboçado em Aang.
Se num desenho animado os dubladores são a alma da atuação, ter a experiente Andrea Romano (das animações para TV da DC Comics) como diretora de voz e um elenco com nomes como J. K. Simmons (o JJ Jameson da primeira trilogia do Homem-Aranha) deve ter ajudado bastante. As estruturas de roteiro do desenho são boas, as reviravoltas envolvendo os personagens são competentes e os antagonistas mereciam textos à parte.
Os vilões de Korra, aliás, lutam por algo mais do que o "domínio mundial". Eles são contrapontos à sociedade política moderna imposta neste universo. Cabe a eles deixar ainda mais difíceis as decisões da protagonista, já que nem sempre suas motivações são "malignas". Esse caráter político embutido na animação fez que ela fosse chamada de subversiva em diversos textos pela internet. E, bem, em dias como estes isto é quase um elogio.
Tolerância
É inevitável continuar as comparações entre Aang e Korra. A segunda protagonista, uma jovem de temperamento apimentado, é o oposto total de seu predecessor. O ingênuo e inocente personagem principal da primeira animação inicia sua jornada "dobrando" (expressão da série para manipular um elemento) apenas o ar e tendo que encarar o processo de crescer e ao mesmo tempo aprender sobre as dobras de água, fogo e terra. Korra já dobra estes três elementos quando o desenho animado inicia. Falta-lhe apenas dobrar o ar, tarefa que a coloca em contato com o equilibrado Tenzin, filho de Aang, que ainda tem de lhe ensinar a encontrar o equilíbrio interno.
Para fechar o "time Avatar" temos Asami (a humana sem poderes, como Sokka em A Lenda de Aang), Mako (o dobrador de fogo, que entra no lugar de Zuko, este último o melhor personagem em Aang) e Bolin (o dobrador de terra e o oposto de Toph em Aang, aqui também fazendo brilhantemente o papel de alívio cômico que pertencia a Sokka).
Personagens diferentes com suas dinâmicas entre si experimentadas até o limite, tentando passar uma das principais mensagens do desenho: tolerância. É um tema quase óbvio no universo do "avatar", o único ser capaz de dobrar mais de um elemento e figura política importante que tem a difícil tarefa de ajudar a manter a paz no mundo.
Uma boa parte disso diz respeito a fazer pessoas de tribos diferentes conviverem juntas, o que é o foco em A Lenda de Aang (1: e eu recomendaria a HQ The Promise, história que se passa entre A Lenda de Aang e A Lenda de Korra onde esse desafio do avatar garoto é mostrada em mais detalhes do que no desenho animado) (2: procure os quadrinhos de Avatar, são inéditos no Brasil, mas são muito legais!).
Quando sua história começa, Korra encontra as tribos vivendo em relativa harmonia, misturadas na progressista Cidade da República. Cabe a ela entender que, agora, as diferenças vão além das localidades de nascença.
Inclusão
...é mesmo a palavra de ordem na animação. Poucas vezes um produto destinado a esta faixa etária teve tantas mulheres fortes e críveis, indo muito além da personagem principal. Sim, temos algumas animações batendo na trave neste tema atualmente, como Frozen e Valente, mas ainda assim distantes do tom ideal, com personagens femininas fortes solitárias num mundo masculino.
Korra, além de tudo, está longe de ser uma personagem branca e também escapa do clichê de personagem principal orfã. Há até mesmo uma vilã deficiente física na terceira temporada. Para completar, o momento final da série daria a tacada final no tema inclusão, mesmo que apenas de forma insinuada. Logo após a exibição do último episódio essa ousadia seria confirmada por um dos criadores em seu blog [ATENÇÃO: SPOILER NESSE LINK].
Filha renegada
Logo na primeira temporada a Nick mudou o horário de A Lenda de Korra do sábado pela manhã para a sexta a noite. A quarta temporada começou a ser exibida quase sem nenhuma divulgação, com seu lançamento antecipado sem aviso. Em vários momentos os criadores da série foram obrigados a usar suas redes sociais para justificar problemas na exibição, como um episódio todo feito de cenas dos episódios anteriores, por conta de problemas orçamentários. A conturbada relação entre o canal e o programa finalizaria com o encerramento da exibição na tevê. A mudança da exibição de Korra da televisão para internet é tão simbólica quanto o próprio desenho animado é em seu conceito geral. Qual casa seria melhor para a animação do que a internet? Não há espaço para uma subversão como A Lenda de Korra na televisão como conhecemos.