Sabe aquelas pessoas que parecem ter lido todos os livros do mundo? Em qualquer situação elas têm uma história, um conto, uma passagem memorável pra compartilhar. O problema é que depois você, reles mortal, vai procurar o livro e geralmente não consegue encontrar. Ou porque não lembra direito o título, ou porque ele já está esgotado, ou simplesmente porque nunca foi traduzido. Enfim, é frustrante; e como você provavelmente deve ter um ou dois amigos assim, sabe muito bem do que estou falando.
Pensando nisso, três pessoas que se enquadram na descrição acima resolveram criar uma forma de poder indicar suas histórias, contos e passagens memoráveis preferidas sem que seus amigos ficassem loucos atrás das referências. Foi assim que, em uma noite chuvosa de 1937, surgiu o protótipo de uma Antologia de Literatura Fantástica, idealizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo.
3 anos depois...
Da ideia à publicação foram quase 3 anos, pois além da difícil tarefa de selecionar quais as obras que iriam lhe integrar, teve também o árduo trabalho de traduzir muitos dos textos que não existiam em língua espanhola.
A primeira edição foi publicada em 1940 e é considerada um marco na literatura latino-americana, seja pelo caráter didático da empreitada, seja pelo fato de trazer muitas obras inéditas ao conhecimento do grande público. Tanto que, após 25 anos de sua publicação, ela foi revista pelos seus organizadores, que aumentaram o número de textos (a primeira edição contava com apenas 54 textos), além de enriquecerem a seleção retirando obras de autores que se repetiam, tornando-a ainda mais eclética.
Fruto da paixão pela fantasia de três monstros da literatura argentina, essa Antologia conta atualmente com 75 textos dentre contos, excertos de livros e peças de teatro dos mais variados estilos e das mais sortidas épocas. Dentro dela, tanto encontraremos velhos conhecidos nossos (Kafka, Wells, Carroll, Poe), quanto teremos gratas surpresas com autores que nunca ouvimos falar antes.
São histórias de fantasmas, seres imortais, metamorfos, viajantes do tempo, sonhadores. O que todas têm em comum? A capacidade de despertarem em nós a curiosidade acerca do desconhecido, do oculto, do obscuro. E o mais legal disso tudo é poder perceber que o ser humano, independente de época, posição geográfica ou raça, sempre foi obcecado contar histórias fantásticas.
Quem traz até nós essa maravilha literária é a editora Cosac Naify, que como sempre caprichou ao extremo na edição e na tradução. Importante detalhe é que foi feita a opção de traduzir diretamente da segunda edição da Antologia, publicada em 1965, o que manteve a fidelidade à intenção dos organizadores. Algumas publicações anteriores não seguiram o mesmo caminho e acabaram desagradando os mestres argentinos (o que elas fizeram foi procurar os textos originais em outras línguas e traduzi-los diretamente de lá).
Para os apressadinhos
Pra dar um gostinho (e também praqueles preguiçosos que não querem ler os 75), vou dar uma dica de 5 textos da Antologia que acho indispensáveis.
1 – Sennin (Ryunosuke Akutagawa)
Nesse conto que abre a Antologia (até porque ela está organizada por sobrenome de autor em ordem alfabética), Akutagawa nos leva até o Japão de uma época desconhecida, onde um simples camponês procura uma agência de empregos (que promete lhe arranjar qualquer trabalho!) em busca de alguém que lhe ensine a ser imortal. Excelente obra de um autor praticamente desconhecido, mas com incrível potencial, que infelizmente não pode ser mais explorada por ter tido um trágico fim: ele tirou sua própria vida aos 35 anos, em 1927. Recomendo também a obra completa que contém esse conto, chamada Contos Breves Japoneses.
2 – Enoch Soames (Max Beerbohm)
Considerado pelos organizadores como o melhor fragmento da Antologia, Enoch Soames é também um dos mais longos. Publicado originalmente no livro Seven Men, de 1919, conta a história de um poeta frustrado que resolve viajar no tempo, até 1997, onde ele acreditava que sua obra seria adorada pelo público. Destaque para a forma como ele encontra para viajar no tempo. Simplesmente imperdível! O restante do livro, infelizmente, não possui tradução para o português.
3 – Tlön, Uqbar, Orbis Tertius (Jorge Luis Borges)
Se você nunca leu Borges, agora não tem mais desculpa. Não há melhor maneira de descobrir o estilo único de escrita deste que é considerado um dos maiores nomes da literatura fantástica. O mais incrível em sua forma de escrever, é que você nunca vai conseguir saber se o que ele relata é realmente ficcional ou simplesmente um causo acontecido em suas andanças pelo mundo. Acompanhe aqui a sua busca não por um simples continente perdido, mas sim todo um mundo, que teria sido propositalmente omitido das enciclopédias terrestres.
4 – O Bruxo Preterido (Dom Juan Manuel)
Não preciso nem terminar a linha. Foi escrito no século XIV e tem a ver com Sandman...
5 – O caso do finado Mr. Elvesham (H. G. Wells)
Disparado, o meu preferido da Antologia. Seria suficiente o peso do autor pra chamar a atenção pra esse conto, mas a surpresa que encontramos ao longo de suas 10 páginas é bem superior a livros inteiros publicados hoje em dia. Acompanhamos o jovem Edward, que recebe uma estranha proposta de um moribundo senhor, Mr. Elvesham. Publicado originalmente em 1897 (mesmo ano do Homem Invisível) no livro The Plattner Story and Others, é inédito no Brasil (pelo menos eu desconheço outra tradução dele; se alguém souber me diga que eu compro!).