Um cineasta fracassado busca inspiração em seu auto exílio no interior.
Morte é um conto escrito por Samuel Severino, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
Morte
Na segunda metade de 2020, o cineasta Glauber Braga se exilou no interior de Pernambuco para escrever seu próximo filme. Com seus 30 e poucos anos, Glauber nunca fez muito sucesso na sétima arte, mesmo tendo escrito e dirigido 10 filmes nos últimos anos. Bom com as palavras, o Pernambucano se destacou na escrita de contos e colunas para jornais e revistas do nordeste e sudeste. Agora ele voltou para o seu estado atrás da coisa que lhe fez começar sua carreira artística
Às 22h de uma terça-feira de outubro, Glauber estacionou o carro na casa 67. Em Santa Cruz, interior de Pernambuco, não há ruas asfaltadas ou uma arquitetura incomum. Aquela casa, alugada recentemente para o seu autoexílio (por assim dizer) era afastada, espaçosa e cercada por uma cerca de madeira pintada de preto.
O cineasta desligou o carro e viu a casa escura e sentiu ela lhe olhar de volta; ele caçou na escuridão algum olhar duro e cortante, mas logo soube que era sua imaginação que já começara a trabalhar. Passaram pela sua cabeça as histórias da cidade, as contraindicações para que ele não fosse tão longe e que a capital era que iria lhe ser útil, como foi para os grandes poetas de outros tempos.
Ao entrar na casa, sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha e mal pode esperar para ver o que iria datilografar naquela atmosfera inquietante e morta. Precisava encontrar um lugar.
– Minha querida, à sós de novo. – Viu um brilho percorrer a escuridão da sua Wanderer Continental alemã herdada do seu avô depositada na mesa do escritório. – Faremos do jeito certo.
Olhos fechados encaravam o teto e a sua respiração descompassada flertava com os passos sorrateiros que vinham de longe. A madrugada é sempre assim: uma garrafa de vinho e uma punheta breve lhe nocauteia. Se deita no sofá da sala com o peito descoberto sentindo o suor congelar na sua pele e, por um momento, se é bebê de novo, envolto na placenta, só que, dessa vez, com a fumaça do cigarro impregnando o ar e o seu hálito.
Não precisa mais ouvir os passos. Ou se é suicida ou, por uma fração de segundo, se é corajoso. Arregala abruptamente as pálpebras e caça os olhos que se deitam e se deitaram sobre você desde o início. Só encontra, dentre os rejeitos de solidão, papéis rasurados e bolas largadas como fruta na estação.
“Caceta...” a atmosfera da casa lhe dizia que “tinha alguém aqui”. Mas a certeza da visita estava ali plantada no chão fosco. Viu a máquina de escrever, levemente desdentada, escrever - tecla por tecla - genérica e verticalmente a palavra “M O R T E”; seu instinto foi correr até a porta e vasculhar o perímetro, mas estava anestesiado pelo medo e pela raiva para fazer algo. Seu corpo pedia café e Glauber foi fazer.
– Carlos, quem mais tem a chave da casa? – sobressaltado e devidamente puto, Glauber exigia respostas. O telefone fixo da casa, enfim, teve uma serventia.
– Perdão?
– Carlos, alguém entrou nessa porra.... A menos que tenha entrado pela fresta das telhas, eu não sei como essa pessoa poderia ter entrado aqui e não ter feito barulho e sair sem levar nada.
– Ninguém mais tem a chave. Ponto. Se não se sente seguro, eu posso ligar para a polícia e pedir pra eles intensificarem as rondas pelas redondezas, mas não sei se adianta.
– Você morou aqui. Não tem nenhuma arma escondida em algum lugar?
– Não tem armas na casa desde 85. Eu garanto que se alguém tivesse a cópia da chave eu saberia.
“Eu vou pegar esse filho da puta”
– Carlos, deixa quieto. Deve ser doideira minha. Acho que consigo me virar.
O telefone martelou o gancho e o café esfriou em cima da mesa sem ser bebido. A noite gemia entre os sussurros dos grilos. Na cadeira de madeira, Glauber acendeu um cigarro amassado e ficou olhando pela janela; era só barro batido até onde a vista alcança e cansa ver tanta pobreza ao redor em um lugar onde se devia predominar o verde. Mas já passou esse tempo e a gente perdeu.
“Desde 85?”
Passos silenciosos rondavam o exterior da casa, não importava quanta chuva caísse e alagasse as redondezas. Glauber rascunhava seu roteiro quando viu um vulto passar pela janela; o susto, o êxtase e a impotência lhe anestesiaram ao ponto de fazê-lo pular da cadeira como num impulso involuntário. Com passos cuidadosos foi até a cozinha pegar uma faca e olhar pela janela; a espera, a ansiedade... e o ar que parecia mais rarefeito, a chuva e todos os personagens que faziam sua espinha petrificar e os olhos duros caírem sobre seus ombros e sua nuca novamente.
As gotas de chuva escorriam pela janela e através da fumaça ele viu surgir nitidamente um homem alto e robusto com a cara lisa, cabelo crespo raso que olhava com indiferença para o homem de samba canção e camisa de flanela, amedrontado e com cara de lunático. Ensopado, o anônimo gritou:
– Minha casa! Eu tenho os meus direitos.
“Carlos filho da puta.” O estranho socou a janela e fez uma rachadura estreita no meio. Glauber com a faca em riste balbuciou gemidos inteligíveis. “Disse que era dono da casa” O estranho desapareceu da janela e Glauber conferiu a porta da cozinha enquanto sentia sua pulsação latejar seus olhos.
Do outro lado da casa, o homem abria a tranca da porta da frente com dois ferros com uma boa porcentagem de ferrugem e suas mãos tremiam compulsivamente; segurava com seus dentes um macete de cabo preto e raspava inevitavelmente a ferrugem da arma que fizera com as suas próprias mãos. Devidamente emputecido, largou o ferro fino que tilintou abafado ao cair no chão; sem pensar em nada, enfiou o pé na porta que, como um escárnio, permaneceu intacta.
“Glauber, eu vou derrubar, hein. Eu vou entrar de novo e tu sabe que eu consigo.” A porta era maciça e branca. Um pensamento que me ocorre, leitor, é que nem o próprio Jack Torrance conseguiria derrubá-la tão facilmente. Como uma tendência de moda, o estranho desferiu golpes com o seu macete na porta e pareceu ter encontrado um adversário à altura porque ela não cedeu. O homem parou de insistir e prevaleceu o som da tempestade.
Glauber fechou os olhos e respirou fundo. Com a faca na cintura, caminhou até a porta. A escancarou e sentou no sofá. “Agora caio na minha rede”. Tirou do bolso um cigarro e o acendeu com seu isqueiro de caveira feito de prata. Forjou um relaxamento como se a adrenalina lhe desse um tesão inacreditável. “No olho do furacão, se dança conforme a música” e esperou seu convidado para um café. Quem sabe até lhe ofereceria roupas limpas e um prato de comida. Tudo bem. Só que as cartas precisavam estar na mesa.
O estranho voltou pouco tempo depois e entendeu que a casa estava vazia ao ver a porta aberta. Correu para conquistar seu lugar. Enveredou pela casa e trancou a porta. Só que não soube o que fazer quando viu Glauber de pernas cruzadas com o cigarro entre os dedos.
– Acabou a palhaçada, Bicho. O que quer nessa casa?
– É minha casa, eu nasci aqui, você não vai ficar com ela!
– Carlos é o dono da casa, ele me alugou. – Glauber se levantou e atirou o cigarro no copo de café. O estranho parecia assustado, nos seus olhos havia qualquer coisa de psicopatia e êxtase. O jogo estava no começo e exigia estratégia.
– Eu sou o mais velho, é minha herança. Meu pai deixou pra mim.
– Qual é o seu nome?
– Te interessa? Só quero que saia daqui e deixe que eu me resolva com Carlos.
– Qual... O seu... nome, senhor?
Glauber pôs a mão sobre a faca na sua cintura. Coberta pela camisa, era invisível para o senhor que impaciente avançou com os punhos armados.
– Ah, muleque do caralh... – Glauber surpreendeu o velho com uma apunhalada na clavícula; a faca ficou cravada no corpo do homem que se segurava no cineasta que foi arrastado para o sofá. O corpo do seu convidado jazia no chão e o jovem sentia-se anestesiado pelo tesão que só a fadiga lhe dava, junto ao medo e a raiva que se esvaiam como o suor ou o sangue no chão.
Olhou em volta e cambaleou até a cozinha para beber água, o que acabou esquecendo quando chegou lá. Trêmulo, se arrastou até a máquina de escrever e sentou na sua cadeira. Respirou fundo, apaziguando seu peito apertado sem folga. Fechou os olhos e ouviu o velho gemer enquanto se levantava com a força do ódio que corria nas suas veias. Sem pensar, o cineasta usou a máquina pela primeira vez desde que chegou ali. Rapidamente pegou a sua querida Wanderer Continental e arrebentou a cabeça do velho moribundo com incontáveis golpes dados do jeito certo. O sangue que manchou a máquina borrifou na face de Glauber que se jogou para trás exausto, sem querer saber de mais nada.
Viaturas e ambulância na porta da frente. Passos na terra molhada e flashes cortando a noite. A jornalista com o bloco de notas pisava com o seu All-Star azul pelos cantos menos encharcados da entrada.
– Qual vai ser a manchete? – Glauber tinha acabado de falar com os policiais e estava na sua mesa de trabalho.
– Depende do que fez.
– Ainda tenho muito o que fazer.
– Preciso perguntar a sinopse do próximo filme?
– Já está tudo escrito. Imagine: um cineasta incompreendido defende sua vida contra o assassino do macete que fugiu da prisão em busca de sua herança. Ele vai matar quem for preciso. – O cineasta se fez entender ao usar uma cadência pausada e até suave. Seus olhos tinham algo de esperançosos e cansados.
A mulher se afastou e deixou o homem no seu próprio mundo.
Certa noite, Clara, a jornalista, zapeava seu aplicativo de Streaming e se deparou com o filme ‘M-O-R-T-E – Baseado em fatos reais’ escrito e dirigido pelo próprio Glauber Braga: “O desgraçado conseguiu”.
O aplicativo pagou muito bem para produzir o filme que, logo em seguida, estreou no top 5 de filmes mais assistidos na plataforma. Glauber entrou no imaginário popular após o caso. Ele foi inocentado por ter atuado em legítima defesa. Seus filmes antigos ganharam mais notoriedade e o diretor passou a ser respeitado na indústria cinematográfica brasileira.
Esse conto foi escrito por Samuel Severino para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.