Cansado do conforto, Floquinho foge em direção ao desconhecido, conduzindo seu companheiro para um local indesejado.
O Pastor é um conto escrito por Samuel Severino, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
O Pastor
Não existe inverno em Jaboatão dos Guararapes. Apenas chuvas torrenciais que atiçam o calor e sopram ventos carregados com frio. O temporal inunda ruas e bairros, transformando-os em mangues ou pântanos estéreis. Trovões sucedem relâmpagos e anunciam o fim dos tempos. O vento sopra até demais nessas noites, e não demonstra a mínima cordialidade ou sequer uma trégua iminente. Mas é assim em todo mês de junho; uma série de “pés-d’água” que ceifaria (exitosamente) quem ousasse cruzar o seu caminho.
No dia 9 de junho, a chuva não dava trégua há uma semana. Ruas alagadas e sem energia, árvores caindo. Era esse o único tema (isso quando uma barreira não deslizava) abordado pelos jornais, desde a República até o Caderno de Pernambuco. João leu todas essas matérias nos jornais que esticava no chão para dormir à noite, mesmo sendo de dias atrás. A mendigagem sucedeu seu banditismo enquanto jovem, que sucedeu o lança perfume e a cocaína. Os anos 70 tiveram um sabor especial, ou cheiro, melhor dizendo.
Naquela tarde de ventos uivantes, Prazeres teimou em conhecer o frio. João se encontrava deitado na quadra da praça do bairro, com um casaco preto aberto até o peito. E lá dentro jazia tranquilo o seu gato preto com uma mancha branca ao redor do olho esquerdo como um tapa-olho. Floquinho foi acordado com pena (era fofo dormindo), mas estava na hora de ir para nunca mais voltar.
Floquinho parecia perturbado naquela manhã e na primeira oportunidade, correu livre além da vista do seu companheiro sem hesitar e olhar para trás. – Ei!?! – Disse ele, correndo atrás do gato. O homem teria poupado seu peito de tamanha preocupação se soubesse que Floquinho queria apenas morrer sozinho, sem a mínima cerimônia. Se pudesse, escreveria na sua lápide: “FLOQUINHO: GATO FIEL QUE TEVE A DECÊNCIA DE MORRER SOZINHO.”. Mas só podia correr. Como seu dono que, fadigado, só pôde pensar “fí-di-rapariga”, assim, como uma palavra só.
Entrando e saindo de becos, o Gato avistou com seus olhos negros a igreja azul no fim da rua sem nome, onde só havia capim alto e os fundos das lojas disponíveis para alugar. Na parede lia-se: “Assembleia dos Arcanjos Renascidos”. Seus passos não poderiam ter sidos mais infelizes.
O mendigo se deparou com aquela igreja com a tinta azul descascada e suja e algumas ratazanas no corredor a céu aberto. Era uma igreja grande: com uma área principal retangular comprida e uma porta que dava acesso a outro cômodo quadrado ao norte; a oeste, janelas quadradas e uma porta que dava acesso a um corredor estreito; ao fundo, mais ao norte, havia outro cômodo quadrado.
Se a chuva não tivesse engrossado, ele sentiria o cheiro de podre que vinha dela e, com ânsia de vômito. iria embora. Floquinho, por outro lado, não poderia estar em lugar melhor (mesmo que o melhor para ele fosse o peito de João dentro daquele casaco). O gato estava hipnotizado pelo tamanho dos ratos e ficou em posição predatória.
João agarrou as maçanetas brancas e deu um empurrão. As portas velhas foram para frente e voltaram; O som seco ecoou pelo interior do prédio e logo os ratos obesos encararam a porta branca como se o mundo estivesse se partindo ao meio; seus olhos frios de morte estamparam medo. E ele forçou a porta mais uma vez, a porta abriu.
O mendigo deu um passo à frente quando a porta arrebentou, mas sua cabeça se inclinou para trás quando seus olhos pousaram sobre aquela imagem iluminada demais para ser omitida. Diante dos seus olhos tinha mais ratazanas do que eu posso contar. Qualquer uma daquelas pestes poderia se travestir de Floquinho sem o menor problema. O próprio sentiu-se ameaçado e um chiado agressivo e grave antecedeu o começo daquela batalha. Floquinho se jogou em cima de uma ratazana, cravou suas unhas no seu pescoço e não parou de morder sua cabeça até ver o sangue imundo da peste escorrer como uma cachoeira. João sentiu-se inclinado a ajudar, mas estava diante de coisas que lhe fizeram dizer “Au Revoir” para o seu estômago e sanidade mental.
A sala retangular principal tinha apenas 3 ou 4 bancos compridos revirados e espalhados. No fundo, tinha 2 colunas de cadeiras plásticas com poeira grossa em cada palmo delas. Telhas despedaçadas ao chão compunham tal cenário. E João percebeu que não fora o único mendigo a cair naquela cova demoníaca de atmosfera pesada.
Em cima do altar, havia corpos desfigurados com buracos ao redor do tronco que serviam como passagem para os órgãos mais saborosos. Alguns ratos se aventuravam indo pela garganta até o intestino, mas parecia melhor ir degustando calmamente cada centímetro daqueles corpos putrefatos. Bem como estavam fazendo com Floquinho agora. O impávido felino que não tinha nada a perder, foi feliz no primeiro golpe mas logo teve seu corpo cravado com dentes de ratazanas famintas. Elas puxavam e puxavam, e pedaços da carne saíam, fazendo-o morder com mais força e raiva. Seu sangue escorria pelas suas costas molhadas da chuva. Com a inevitabilidade da morte diante dos seus olhos, ele soltou o rato que, cambaleante, se afastou coberto de sangue enquanto mais ratos atacavam seu então oponente. Floquinho foi arrastado para o altar e foi coberto por uma centena das feras que, normalmente, estariam abaixo dele na cadeia alimentar.
Todas as noites, sob os churreios dos grilos, a ninhada se apresentava serena e dispersa. Os filhotes se amontoavam junto aos pais e não havia trânsito para qualquer lugar.
Discretamente, vindo da sala do corredor, ouvia-se passos desencontrados em direção à sala principal. Era o pastor daquele rebanho repulsivo manchado de sangue. O homem já não era mais um homem; E era tão selvagem quanto às crias. O Animal esquelético estava com fome e os ratos sabiam disso. Quando ele entrou na sala principal eles o olharam de baixo para cima. Seu corpo magérrimo e estranhamente pálido apresentava manchas estranhas avermelhadas e púrpuras minguadas indo do abdômen ao peito. Com os olhos pretos cheios de fome, o pastor observou a ninhada e reparou na ratazana velha que vinha timidamente em sua direção. Estava se oferecendo para ser o jantar e encarou a morte iminente com afabilidade. Seus olhos deitaram-se na plateia antes de voltar para o seu jantar e regressar para o seu covil.
O quarto era iluminado pela ausência de telhas. Claramente podia-se ver a mesa de ferramentas no fundo da sala e o banco largo na lateral do cômodo. O rato foi posicionado na mesa enquanto o homem selecionava a ferramenta adequada para o serviço. Entre facas, serras, martelos e alicates (todos, ou quase todos, enferrujados), a bola da vez foi o cutelo. Com a mão esquerda firme no corpo do roedor, sua mão direita subiu e desceu precisa. Sim, matando o rato. Mas não o decapitando. O sangue espirrou pela mesa, mas o cutelo estava limpo. E ele deu outra pancada, e a cabeça saiu.
A pele do bicho foi arrancada; os membros, cortados. O homem estripava magistralmente as suas crias e os deixava limpíssimos. O cardápio geralmente era esse: bifes crus que harmonizavam perfeitamente com água das chuvas (quando havia chuva).
Volta e meia, o pastor perambulava à noite procurando madeira para incendiar o seu latão de tinta velho e ter carne quente para as refeições. Era até melhor assim: quando se cozinha os membros e tripas dos ratos, se tem mais variedade no cardápio. Mas nem sempre era possível.
Os ratos, naquela eterna manhã tempestuosa, não atacaram João como normalmente o fariam. Floquinho não teve a mesma sorte, e tal cena não poderia ser mais repugnante e excruciante. O mendigo estava encostado na porta quando os ratos foram atraídos pelo seu cheiro acre de carniça, atiçado pelo banho que a chuva lhe dera há pouco. Eram com abutres rondando um corpo prestes a dar um último suspiro. Não sabiam quando, só que era inevitável comê-lo ali mesmo com a porta aberta.
Com o coração aos pulos e a sensação de paralisia, viu uma sombra rondar pelo corredor externo da esquerda. Não pensou em fugir; até um dos ratos lhe cheirar com mais curiosidade e lhe lamber os dedos dos pés úmidos e de unhas grossas e longas. Sem pensar em nada, chutou-o como se quisesse marcar um gol, mas ele não foi para muito longe. As ratazanas se atiçaram enraivecidas, mas uma voz rouca ecoou pela igreja. – Acalmem-se, filhas da noite. – Era o pastor. Seu sotaque era diferente da região jaboatanense; mais característica de Recife, capital. Suas crias dispersaram, apaziguando a tensão. – Eu entrei por engano. – disse João. – Já ‘tô' indo. – sua tentativa de fugir evaporou quando a mão do Pastor se ergueu firme sobre seu ombro. Sua força, derrubando expectativa, não era tão substancial.
– Não posso deixá-lo ir nessa chuva. – o tom do anfitrião era ameno. Seus olhos penetravam a alma de João mas nada carregavam, se não fome e curiosidade. Carne humana fresca; seria a primeira ceia compartilhada com as suas crias, como fazia todo sábado nos cultos de ação de graças. – muito menos sem tomar café da manhã comigo. – seu sorriso era demoníaco. O hálito podre do pastor dava náusea em João; ele não escondeu e o pastor não se importou. “Essa ‘miséra' 'qué' me dá comida podre” pensou aflito. Seu nível de aflição não foi maior por não poder ver a chave de fenda escondida na cueca do pastor. – ói, o senhor me dê licenç... – Quando conseguiu se desvencilhar da mão do anfitrião, João foi surpreendido com um golpe da chave em sua nuca. O mesmo só pôde gemer de dor no chão úmido e cinzento, numa solução viscosa de água e poeira de anos atrás. Incansável e implacavelmente, o Pastor lhe acertou uma série de perfurações muito bem sucedidas. Quando o sangue de um vermelho brilhoso escorreu pelo casaco, o animal deu pôr satisfeito. Tendo trancado a porta, carregou João ainda vivo, prestes abatê-lo e começar os preparativos da ceia extraordinária.
A noite chegou despercebida, mas trouxe consigo a luz elétrica e o céu limpo que Prazeres tanto precisava e queria. Foram 8 horas que escorreram tranquilas no relógio enquanto o pastor cortava, serrava e estripava João como uma galinha. Por mais enferrujadas que estivessem suas ferramentas, o cutelo conseguia quebrar os ossos em movimentos bruscos e certeiros e o serrote estava ali auxiliando exitosamente. Imerso naquele mar de sangue, o pastor conseguiu salvar dois litros num galão velho.
Mais tarde, a mesa de ferramentas foi para o altar e todos estavam ali reunidos, com fome e demasiada ansiedade. Na frente do latão incendiado, o pastor proferiu com a garganta limpa.
– Com o peito aberto, agradeço ao pai pelo dia e pela noite; pelos sonhos tranquilos por ele velados e pelos pratos preenchidos com fartura; e que a vossa graça caia sempre sobre a nossa casa. – e o pastor, naquela mesa farta, se deleitou com o sangue e a carne e admirou o rebanho devorando em paz.
Esse conto foi escrito por Samuel Severino para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.