Quando Fernanda Montenegro surge no belíssimo filme A Vida Invisível (Karim Aïnouz) interpretando a protagonista Eurídice no seu epílogo de vida, sentimos o peso do passar do tempo ao mesmo tempo a familiaridade com a personagem que acompanhamos nas duas horas anteriores (por Carol Duarte) em poucas palavras, gestos delicados e memórias fragmentadas. A arte de viver a vidas dos outros.
A atuação que demonstra a sempre excelência no ofício pela grande dama da dramaturgia brasileira é facilmente comparável com suas memórias intactas, pois ler a história de Fernanda foi como acompanhar um folhetim escrito com a inteligência e a sensibilidade conhecidas nos palcos e telas além fronteiras.
Prólogo, ato, epílogo é uma narrativa afetiva das memórias de Fernanda Montenegro, passando pelas relações familiares, os anos de chumbo, a reinvenção constante enquanto artista, as centenas de trabalhos como atriz e, de certa forma, o Brasil dos últimos 90 anos. (Companhia das Letras)
Contando a saga de seus antepassados portugueses paternos e italianos maternos que migraram para o Brasil, fala de um país múltiplo que na capital Rio de Janeiro se afastava do legado colonialista para criar sua própria cultura. Identidade difundida pelo popular rádio, "profano" teatro, nova televisão e instigante cinema. A transformação da jovem estudante de secretariado Arlette Pinheiro na radioatriz e consagrada Fernanda Montenegro que conhecemos acompanha a trajetória dessas artes.
Da época em que atores eram fichados na polícia e atrizes "categorizadas como prostitutas" até o sucesso internacional nos anos 90 com Central do Brasil, ela narra os desafios de criar filhos vivendo de Teatro com Fernando Torres num encontro de arte e vida. Assim, a busca constante pela qualidade e reinvenção nos textos e mídias são unidas a responsabilidade social. "Ofícios morais" dos atores mostrados na ditadura até a recente capa da revista Quatro Cinco Um. Uma bruxa anti-censura tem suas magias e seguidores.
Durante séculos, a arte teatral foi proibida à mulher, mas a partir do momento em que nós pisamos naquela arena, a questão do gênero tornou-se irrelevante. Fora dali o sexo feminino ainda enfrenta enormes preconceitos, porém, em cena, vai ganhar o melhor. De qualquer gênero. Vence o talento. A vocação. A vocação e o talento é que nos dão a absoluta liberdade de ser. Fora e dentro do palco. (Fernanda Montenegro)
Segundo Caetano Veloso, todos intuem nessa mulher feroz e serena uma vocação de líder moral. Pois ela é civilizada e civilizadora, sendo a encarnação da civilização brasileira possível. E se este nunca se tornar um país são e respeitável é porque terá traído Fernanda Montenegro. Então, vamos reverenciá-la.
* Entre julho de 2016 e novembro de 2017, Marta Góes realizou entrevistas com Fernanda Montenegro. A partir do material recolhido e transcrito, Fernanda escreveu a obra entre novembro de 2017 e agosto de 2019.
Prólogo, Ato, Epílogo: Memórias de Fernanda Montenegro
com colaboração de Marta Góes; Companhia das Letras; 392 páginas; 2019.
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