Primeiros Segundos #16 - Fácil | Iradex

Primeiros Segundos #16 - Fácil

Presidentes, bruxas, números e curiosidades. E um pouco mais de histórias que nós achamos que conhecemos mas que, assim como cebolas, são cheias de camadas.

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Texto, locução e edição por Mackenzie Melo. Participação especial: PJ Brandão.


Fácil (versão em texto)

O presidente dos EUA John F. Kennedy em um de seus discursos no ano de 1962 afirmou o seguinte (e isso ecoa em minha mente desde a primeira vez que eu ouvi):
“Nós embarcamos neste novo mar pois há novos conhecimentos a serem adquiridos e novos direitos a serem conquistados e eles precisam ser ganhos e usados para o progresso de todas as pessoas. Isso porque a ciência espacial, como a ciência nuclear ou qualquer outra tecnologia, elas não têm consciência própria. Se elas vão ser utilizadas para o bem ou para o mal, isso depende da humanidade, [...]

Nós escolhemos ir para a lua. Nós escolhemos ir para a lua. Nós escolhemos ir para a lua e fazer essas outras coisas ainda nesta década, não por serem tarefas fáceis, mas porque são difíceis, pois atingir esse objetivo servirá para organizarmos e medirmos o melhor de nossa energia e nossas habilidades já que esse desafio é do tipo que estamos dispostos a aceitar e não estamos dispostos a deixar pra depois, pois nós temos toda a intenção de conquistá-los.”

“We set sail on this new sea because there is new knowledge to be gained, and new rights to be won, and they must be won and used for the progress of all people. For space science, like nuclear science and all technology, has no conscience of its own. Whether it will become a force for good or ill depends on man,[...]

We choose to go to the moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard, because that goal will serve to organize and measure the best of our energies and skills, because that challenge is one that we are willing to accept, one we are unwilling to postpone, and one which we intend to win.”

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Sejam bem-vindos a mais um Primeiros Segundos. Eu sou Mackenzie Melo e junto comigo e algumas vozes amigas vocês irão passear por facilidades e dificuldades de histórias e ficções que merecem um destaque, pelo menos em minha opinião. Espero que você possa me dar uma chance de lhe apresentar algo novo para ouvir/ver. Seria excelente poder saber sua opinião tanto sobre esse episódio quanto sobre as indicações que farei. Visite o site do Iradex (www.iradex.net) e muito obrigado por estar aqui.

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Eu adoro números e matemática – talvez já tenha mencionado isso em algum dos episódios anteriores do PS. Coincidências também me causam curiosidade e não posso dizer que não gosto delas. Só que, diferente dos números, as coincidências não são previsíveis e, por isso mesmo, creio que despertam muito mais curiosidade do que a matemática. Infelizmente.

Só que, diferente do que você possa estar pensando, não vou falar nem sobre matemática, nem sobre curiosidades. Quis mencionar isso porque quando estava começando a escrever sobre o podcast que vou indicar, descobri algo que é uma bobagem, mas que por ser uma quase coincidência numérica entre o discurso de Kennedy e Unobscured, minha mente coçou e decidi falar sobre ela.

Unobscured é um podcast histórico, tipo um documentário em áudio, com um narrador que nos conta uma história diferente a cada temporada em formato de contação de histórias (storytelling). Durante essa narração, são inseridos áudios de partes de entrevistas com especialistas no assunto que ele está abordando. Até aí, não tem nada demais, pois todos sabemos como podcasts/documentários desse estilo acontecem e, talvez, já estejamos até certo ponto “cansados” de algo assim.
O que me fez gostar tanto desse podcast e querer indicá-lo, entretanto, não é necessariamente o formato ou mesmo a qualidade sonora da produção. Dessa vez escolhi o Unobscured Podcast por causa da temática e de onde acontece a história contada nessa primeira temporada. Segundo Aaron Mahnke, o criador do podcast e a voz por trás da narrativa, a razão pela qual Unobscured existe, retirada do próprio website da série é:

“A História está cheia de histórias que nós achamos que conhecemos. Elas são antigas e sombrias, mas o tempo nos fez perder perspectiva e clareza sobre elas. Essas histórias se tornaram obscurecidas e mal compreendidas. É por isso que essa série existe: mergulhar fundo e iluminar alguns dos momentos mais escuros da história. Ou seja, desobscurecê-la.”

“History is full of stories we think we know. They are old and dark, but time has robbed us of perspective and clarity. They’ve become obscured and misunderstood. That’s why this series exists: to dig deep and shed light on some of history’s darkest moments. To make it Unobscured.”

“Bom, até aí tudo bem”, você pode estar dizendo, “mas já está me dando nos nervos essa enrolação toda. Onde você quer chegar com essa história de coincidência e números?” Ok. Vamos lá.

Como dizia antes, quando comecei a escrever esse texto (que você pode estar ouvindo) percebi que a ideia de John F. Kennedy citada no começo do programa foi dita no Texas, em 1962. Na verdade, quando fui procurar a transcrição precisa dela, apesar de eu achar que tinha sido dita em 1961, descobri que não. Foi mesmo em 1962.

A história explorada na primeira temporada de Unobscured começou e aconteceu, em sua maior parte, em 1692. 1962 e 1692.

Viram só, eu falei que não era nada demais, mas não pude deixar de falar sobre isso. Números e coincidências promovem em mim essa vontade difícil de controlar. Percebê-las, por menores que sejam, causa em mim essa coceira de falar sobre o assunto. Só que não é para falar disso que estou aqui.

Em 1692, no nordeste dos Estados Unidos da América, na época ainda apenas uma colônia da Inglaterra, mais precisamente, estamos na cidade de Salem. A cidade era dividida em duas partes, Salem Town (Cidade de Salem) e Salem Village (Vila de Salem), e foi lá ou melhor, aqui, que aconteceu uma grande caça às bruxas. Nos dias de hoje essa expressão tem um significado próprio e creio que todos entendemos o que ela significa quando a empregamos em uma situação cotidiana. Em 1962, por exemplo, a caça às bruxas era direcionada – pelo menos do lado dos EUA – à União Soviética, em especial aos comunistas que pareciam ser vistos como a causa de todos os problemas do mundo. (Algo mudou de lá pra cá?)

Entretanto, em Salem, no ano de 1692, a caça às bruxas não foi uma metáfora. Foi real. Quer dizer, real para a população da Província da Baía de Massachusetts (Province of Massachusetts Bay), ainda total e completamente afeita a superstições e onde bruxas “realmente” existiam. Além disso, era controlada por um sistema cultural regido através de um governo que misturava religião e estado e onde os religiosos da época, em vez da busca pela tolerância e da fraternidade que deve ser, em minha opinião, a tônica de toda organização que tem o amor como a primeira e maior de todas as virtudes, se utilizavam dela muito mais como uma chave de separação do que de união.

Não era fácil viver em Salem em 1692 – e, na verdade essa afirmativa serve para muitos lugares do mundo nessa mesma época. Nesta região onde hoje devem habitar por volta de cem mil (100.000) pessoas, na época, no máximo 2.000 (dois mil) seres humanos moravam na mesma área. Ou seja, tudo parecia realmente mais um grande mato com gente aqui e ali do que uma cidade, ou mesmo uma vila. A eletricidade só surgiria mais de um século depois. A Medicina ainda era muito mais uma adivinhação que uma ciência. Muito do que acontecia na vida das pessoas tinha causas inexplicadas e, mesmo dentre as explicadas, as explicações eram, em muitos casos, sobrenaturais.

Assim, o que se pode esperar quando combinamos falta de conhecimento das coisas com a certeza de já sabermos as causas dessas mesmas coisas? Intolerância é, muitas vezes, a resposta a essa pergunta.

Desse modo, quando ocorrências inexplicadas começam a acontecer e coincidentemente pessoas,
1) não gostam de outras; ou,
2) têm interesses escusos; ou,
3) mesmo que sem uma intenção maldosa, acusam outras de coisas baseadas apenas em crendices sem um real desejo de buscar uma resposta racional para os acontecimentos... parecemos ter uma receita pronta para um desastre.

Foi exatamente isso que aconteceu em Salem, entre fevereiro de 1692 e março do ano seguinte. Esses ingredientes “mágicos” foram misturados em um caldeirão de achismos e crendices e dezenove (19) pessoas (14 mulheres e 5 homens) foram levadas à pena de morte, um (1) homem foi morto por esmagamento por pedras por não querer confessar e pelo menos cinco (5) pessoas morreram esperando julgamento.

Dentre os acusados e os que morreram estavam pessoas da própria igreja e respeitadas na comunidade, pessoas não religiosas ou da religião “errada”, ricos, pobres, escravos, pessoas comuns como vocês e pessoas estranhas como eu, pessoas de fora e pessoas daqui. O que eu quero dizer é que, apesar de muitas vezes em casos assim queremos apontar um motivo único e um alvo padrão e simples de identificar, esse caso não foi assim. Não, não é fácil apontar um único motivo e um único culpado para o acontecido.

Unobscured nos faz pensar em vários aspectos diferentes da história do julgamento das Bruxas de Salem e sai do lugar comum ao não explorar apenas as perspectivas mais chamativas que um tema como esse normalmente suscita. Aaron Mahnke, o apresentador, pede desculpas várias vezes durante toda a temporada de 12 episódios por saber que muito do que vai falar pode parecer não ter nada a ver com a ideia de uma caça às bruxas como vemos em filmes hollywoodianos. Ele fala sobre guerras entre os habitantes locais e os indígenas da região que estavam acontecendo na mesma época. Fala sobre o sistema judicial e o que significavam as cortes especiais que se formavam. Para isso, por exemplo, ele apresenta trechos de entrevistas com diversos historiadores locais e nacionais, ganhadores de prêmios jornalísticos e investigativos. Nesses papos eles falam com propriedade sobre vários dos ângulos sob os quais a história deve ser observada para que fujamos das interpretações simplistas e fáceis que, normalmente, parecem ser as mais atraentes por gerarem maior curiosidade.

Assim, diferentemente da coisa simplista, fácil – e por isso mesmo curiosa – que é perceber a bobagem de ver 1962 e 1692 como curiosidade eu diria que o podcast Unobscured – pelo menos essa primeira temporada – está mais para matemática. A disciplina tem sua parte simples e curiosa, mas jamais é apenas simplista e fácil. Pode ser (e é) complexa e bem difícil. Só que quando você aprende a olhar para ela como algo que afetou e afeta sua vida diária e ininterruptamente, você pode até continuar não gostando dela, mas sabe que precisa aprender a ter respeito por ela pois percebe o alcance que ela tem em sua vida.

Existem poucas coisas mais poderosas para modificar o nosso modo de ver o mundo do que viver e experimentar algo e, de repente, encontrar ou perceber que aquilo já aconteceu com outros e que culminou com algo bem ruim. Seremos ainda mais diferentes quando, ao percebermos nossas atitudes semelhantes às que vemos/ouvimos fora de nós nos fizerem olhar para nós mesmos e decidirmos agir para mudar para melhor.

Encontrar-me hoje morando nessa região onde aconteceu a tragédia do julgamento das “bruxas de Salem” é, naturalmente, um dos motivos de eu decidir fazer um PS sobre Unobscured. Entretanto, não foi o único nem o principal. Eu disse no início que decidi falar sobre ele porque estou envolvido, mesmo que apenas por morar na região, na história que o podcast conta. Ao ouvi-lo, me dei conta que, indiretamente, sou responsável por fazer com que histórias como essa possam não se repetir mais. E um bom meio de fazer isso, é torná-las mais claras, menos obscurecidas. E isso não é tarefa fácil, mas é tarefa necessária, assim, como disse o presidente Kennedy no início do episódio, decidi também fazê-la pois ela é difícil.

Não foi fácil ouvir o Unobscured, por diversos motivos. Creio, também, que provavelmente será difícil para vocês do mesmo modo que foi para mim. Seja pela língua, pela linguagem ou pela temática. Entretanto, posso garantir uma coisa: ao final de 12 episódios, além dos episódios bônus com as entrevistas completas com os historiadores que fizeram parte dessa primeira temporada, vocês sairão, diferentes e, espero, melhores. Sairão com a certeza de que nós humanos somos complexos e precisamos, de qualquer modo, aprender com os erros e acertos do passado para não cometermos os mesmos erros bárbaros que temos cometido por séculos e séculos.

Assim, num mundo em que cada vez mais baseamos nossas opiniões apenas nas manchetes, em postagens de Facebook e em opiniões velhas e batidas, muitas vezes sem nenhuma pesquisa ou leitura mais profunda e demorada, vejo muitos paralelos entre a história de 1692 em Salem e nossos dias atuais. Ouvir Unobscured, certamente, nos ajuda a perceber isso com clareza e, quem sabe, nos ajuda a nos afastarmos desse tipo de postura em nossas vidas.
Não é fácil, mas não é por isso que vamos desistir, não é mesmo?

P.s.: existem algumas coisas que, apesar de terem fim, parecem não querer terminar. Escrever esse episódio, para mim, foi uma dessas tarefas quase impossíveis. Quanto mais eu escrevia, mais parecia ter coisa para escrever. Voltava e apagava um monte de coisa por estar deixando o texto maior do que eu acho que deveria ser. Mesmo assim, ainda ficou maior que a todos os outros Primeiros Segundos que escrevi até hoje. Foi difícil cortar, mas precisei. Quem sabe em outro momento voltemos a falar mais sobre o assunto.

P.s.2: quero agradecer imensamente a Pedro PJ Brandão por emprestar sua barba e sua voz para dar vida a uma das falas mais marcantes do presidente Kennedy. Assinado, seu amigo crápula. (sim, é uma piada interna)

P.s.3: se vocês quiserem outros materiais que lidam com a história do Julgamento das Bruxas de Salem, visitem a página desse episódio que vocês encontrarão diversos links para livros, sites, filmes e séries (fictícios e documentais), mapas e transcrições dessa história.


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