Quantas emoções cabem em um único segundo?
Cotidiano é um conto escrito por João Rodrigues Lima e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
Cotidiano
A cena toda ainda está congelada, estampada pelo medo em algum lugar no fundo da minha mente. Eu estou ali, meio abaixado, olhando a turba do outro lado da rua com cara de dor e confusão e uma pontinha de preocupação. Um braço estendido para a algazarra de papel que se espalha em direção ao chão... é dinheiro, conta da COELCE, identidade, boleto, cartão. Tem de um tudo ali...
Bem ao lado, dividindo a cena, está o sujeito. De capacete, jaqueta, sapato... Quem usa sapato e jaqueta debaixo desse sol de Fortaleza?! Devia ter desconfiado, sujeito bom não era de ser. Leva numa mão uma bolsa bege, chique, mas dá pra ver que é imitação. Cinquenta conto na feirinha, no máximo. A outra mão, a esquerda, segurando algo que não consigo ver, enfiando no bolso da jaqueta. Não dá pra ver, mas tenho certeza que é revolver... Fundo de mente tem dessas coisas quando está em pausa, de ter umas certezas que a gente nem sabe de onde vem. De parar numa hora dessas e ainda pensar “...olha só, o sujeito ainda é canhoto”.
Do lado de dentro tem cinco pessoas: na fila tem uma moça desabando, estancada no meio do desmaio pela pausa dramática da cena; um senhor, meia idade, lívido, queixo caído e cara de quem ainda não estava entendendo o que acontecia; uma senhora, o rosto que normalmente seria a expressão da bondade de Deus na terra estava vermelho, indignado, desfigurado pela ira; A atendente, assustada mas acostumada com a situação, com o telefone a meio caminho da orelha; Na preferencial um senhorzinho procurando algo em uma pochete simpática, alheio ao caos instalado no mundo. Vale dizer que a tia enraivecida apontava para mim. E gritava a plenos pulmões. E era a dona da bolsa que o sujeito carregou. Daí a certeza de que era de camelô. Coisa de fundo de mente...
Na outra calçada meia dúzia de pessoas. Gente simples, dessas que se espera encontrar numa manhã de terça qualquer. Um gerente de loja, um caixa do supermercado da esquina esperando dar a sua hora, dois transeuntes passando ali por puro acaso, um guarda municipal de mão no coldre e tudo, um taxista pulando do carro. Gente simples tomada pelo ímpeto do heroísmo, mobilizados pelos gritos da tia transtornada. Mesmo olhando assim para a cena congelada, a ação é evidente. Vinham todos confiantes, certeiros, atender ao chamado da justiça... Vinham todos na minha direção...
E eu ali, acostumado com a má sorte da vida, já esperava o pior. É assim na quebrada, quando por “azar” de ser pobre, dobro uma esquina e dou de cara com a patrulha, sou convidado a dar educação em troca de esculacho, tapa na cara... É assim no shopping quando, por “azar” de ser preto, o segurança me confunde com bandido, me conduz gentilmente até a saída, sem o presente de dia das mães... E não podia ser diferente agora, que além de ser preto e pobre, ainda dou o azar - e sem as aspas dessa vez - de sair para pagar uma conta e acabar com um assaltante tropeçando em mim na porta da lotérica. E olhando daqui, do fundo da mente em pausa, a cena toda congelada tipo Matrix, não consigo conter um suspiro ao pensar que a mãe vai ficar sem luz e sem o filho no barraco por um bom tempo...
Esse conto foi escrito por João Rodrigues Lima para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.
