Com a ajuda de uma divindade caótica, um sacerdote realiza um ritual para visualizar momentos que já passaram. Toda a história do mundo se passa na frente dos olhos deste sacerdote que deseja encontrar um momento perdido na passado daquele lugar.
Setecentos e Trinta e Oito é um conto escrito por Raphael Maia Ribeiro, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
Setecentos e Trinta e Oito
A pálida figura caminhou no corredor daquele templo escuro em direção ao altar. Vestia seu vishnar, o manto sagrado dos sacerdotes do Supremo Viscus, que era negro como aquela noite sem lua. O silêncio do templo era quebrado apenas pelo eco de seu caminhar e pelo ranger metálico do que a figura trazia atrás de si: Duas gaiolas. uma era grande com um felino pardo e maltratado, a outra era diminuta e trazia um roedor cinza e dentuço, com pequenas asas que de nada serviam para andar nos esgotos. O templo estava vazio, como era de costume, com a exceção de um fiel ajoelhado na primeira fila de assentos.
O cheiro do altar era repulsivo, uma mistura de fezes e sangue acentuada com o aroma de ervas venenosas, retorcidas e espinhosas, de cheiro forte e azedo. Tributos oferecidos à Viscus em troca de favores, alguns obtidos, outros não. Duas chamas ardiam direto da terra, em canteiros ao fundo do templo. Duas quedas d'água finas caíam em pias e formavam redemoinhos. O altar era completamente esculpido em rocha vulcânica e rodeado de ervas daninhas. Todas as criações de todos os supremos estavam lá, assim como todas as distorções trazidas por Viscus.
A figura conhecia o templo como ninguém. E, se o perguntassem, diria conhecer o próprio Viscus muito bem. Aproximou-se do altar, retirou uma adaga ritualística da cintura e a apoiou no mesmo. Despiu-se de seu Vishnar o retirando por cima da cabeça. Seu corpo era magro, quase esquelético. Quem parasse para contar, contaria setecentos e trinta e sete tatuagens minúsculas em forma de adaga, uma das representações simbólicas de Viscus, todas espalhadas pelo corpo magro. Nu, se ajoelhou.
Fez uma prece silenciosa, implorando o favor do Supremo. Sua garganta secou, pois sabia que a noite seria longa e difícil. Pensou em desistir, em dar meia volta e deixar o seu objetivo. Mas ele não desistiria, assim como não desistiu nas noites anteriores. Faria o que fosse preciso para conseguir o que queria, o que precisava. Disse as palavras que lhe ensinaram a dizer em situações como aquela, eram palavras sagradas, mas ele as via como bajulações. Tentativas de ludibriar Viscus e de conseguir o seu favor. As disse mesmo assim, Viscus era um Supremo egocêntrico e as palavras faziam efeito.
A figura levantou-se e retirou o roedor da gaiola, o animal estava apavorado, mas só até ser tocado. Quando a figura o pegou na mão, foi como se ele aceitasse seu destino, se aquietou. O sacerdote pressionou a adaga contra o pescoço do animal e abriu um talho de um lado ao outro de seu corpo, o roedor não lutou pela vida, deixou ela fluir de seu corpo e derramar-se no altar. O cheiro de sangue ficou mais forte, o homem deixou o corpo sem vida do roedor cair no altar, molhou as mãos no sangue e as deitou no altar com as palmas para cima. Assim ficou por alguns segundos, mas ele sentia, sentia que o supremo o havia notado, mas ignorava sua tentativa de agrado. Abriu os olhos.
Ele estava preparado, havia percebido a relutância em aceitar o sacrifício aumentando à cada roedor exsanguinado no altar. Esta noite ele havia trazido uma gaiola a mais, com um sacrifício mais valioso. Pelo menos ele achava que era um sacrifício mais valioso, visto que não existia, ao menos que soubesse, um quantificador exato para comparar qual vida valia mais. Dessa vez trouxe o animal para o altar ainda dentro da gaiola. O felino era grande, magro e não estava de bom humor. Remexia-se na gaiola e soltava rosnados agudos, que soavam como se o inferno tivesse um coral infantil desafinado. A mão da magra figura entrou na gaiola e foi mordida e arranhada. Conseguiu agarrar lhe o pescoço, enquanto as garras da pata da frente afundavam-se em seu braço.
O felino não aceitou seu destino. Isso, acreditava o sacerdote, definitivamente o fazia valer mais para Viscus. O homem o puxou para fora, enquanto ele se retorcia e rosnava. Com a outra mão deslizou a lâmina no pescoço do animal, que continuou a emitir sons, que com o rasgo que foi aberto no pescoço lhe saiam direto da traqueia, até que desfaleceu. Havia muito mais sangue no altar agora, formava uma rasa poça centralizada que ocupava quase a totalidade da área do púlpito. A figura tatuada novamente deixou o corpo do animal cair, que ainda lhe rasgou os braços com as garras que estavam dentro de sua carne quando os olhos do felino perderam a vida. Mais sangue caiu na poça, vindo de seu braço. Definitivamente aquilo tinha que valer mais.
As mãos novamente embebidas em sangue, com as palmas para cima, os olhos fechados com uma resignação inabalável. O Supremo estava lá, a figura o sentia, próximo, se aproximando mais. Como se lhe chegasse aos ouvidos e dissesse "Mais!". A figura abriu os olhos, estava furioso, odiava os joguetes daquele Supremo narcisista. Expeliu o ar dos pulmões desconcertado, não trouxera mais nada, e Viscus sabia disso. Virou de costas ao altar para apanhar o Vishnar que estava no chão. A resposta se revelou, estava lá desde que chegara, na primeira fileira de bancos, de olhos fechados e de joelhos.
Aproximou-se silenciosamente, pé ante pé, do homem que ali estava. Trazia consigo a adaga ritualística na mão direita e um sorriso insano no rosto. Agiu rapidamente, para que não houvesse tempo de reação. A adaga perfurou o lado esquerdo do pescoço do fiel que rezava, enquanto ele tentava protestar com alguma palavra que nunca foi terminada de ser dita. A figura pálida do sacerdote o segurou até que ele parasse de se debater, depois o arrastou até o altar com dificuldade. O sacerdote não tinha mais a força que um dia tivera, a juventude que um dia lhe habitou escapou por entre seus dedos e levou consigo parte importante da vida do sacerdote.
O corpo foi mantido com a cabeça em cima do altar, enquanto o sangue saía vertiginosamente de seu pescoço e juntava-se à poça, que virou uma rasa piscina, que transbordou. O sangue escorria viscoso pelos lados do altar e caía pelo degrau que descia para o antro principal do templo. O corpo sem vida do que já havia sido um homem foi solto e caiu com um baque surdo no chão. O cheiro do altar naquele momento era fortíssimo. Cheiro de sangue, cheiro de morte. Três corpos jaziam no templo, como adornos de mal gosto, como se a morte deles não passasse de outra exibição canônica de uma das distorções criadas por Viscus.
As mãos do sacerdote mergulharam na piscina e repousaram no altar. Agora ele viria, tinha de vir. Viscus era narcisista, poucas coisas o agradavam mais do que bajulação, saber que as pessoas fariam tudo por seu favor. De olhos fechados a figura esperou os longos segundos. Engoliu em seco e considerou que talvez o Supremo não viesse. Talvez não visse mais motivos para entregar seu favor àquele velho sacerdote destruído pela vida que tivera. Mas os pensamentos não duraram por muito tempo, ele percebeu que seu raciocínio estava diferente, como se de uma hora pra outra estivesse sobre efeito de Chá de Astrish, uma erva daninha, muita conhecida pelos jovens rebeldes de Mera, que se infundida na temperatura correta causava efeitos alucinógenos em quem o bebesse. Sua consciência bamboleou e ele pensou que fosse desmaiar. Mas justo quando pensou que fosse perder a consciência, sentiu-se abraçado por uma energia inebriante. Ele veio. Viscus estava ali e lhe concedera o seu favor.
E então, de olhos fechados, ele viu, como havia visto na noite anterior e na noite antes dela. Viu seu mundo, Mera, de longe, vazio e sem forma. Ele agora era o supremo, era Viscus, no momento da criação. Viu seus irmãos criando mares e montanhas, plantas e luz, enquanto ele não criava nada. Sentiu-se desprezado e incapaz, como havia se sentido na noite anterior e na noite antes dela. E como o Supremo Viscus se sentiu há muitas eras atrás. Sentiu inveja, e da sua inveja surgiram as distorções. Trevas, sombra, morte.
Esse era o favor que buscava: Perspectiva. Mas esse não era o tempo que o interessava. Estava em conjunto e no controle de toda a existência, como se uma história lhe fosse contada enquanto ele interpretava cada personagem. Viajou, no tempo e no espaço. Viu o rei dragão cair em desgraça, podia sentir o que ele sentiu, ouvir o feiticeiro que o soprava aos ouvidos, até que o vale dos dragões ruísse, virasse lenda. Podia sentir o que cada soldado de cada guerra sentiu, o medo, a adrenalina, a saudade da amada que o esperava, a lâmina. Cada rasgo, corte, furo e pancada. O medo e a dor de quem recebe, a satisfação e a adrenalina de quem desfere. Era enlouquecedor.
Tentou se focar, tentou controlar a realidade que se derramava sobre ele, seguir para o tempo certo. Eras passavam e ele as vivia num piscar de olhos, vivia através de cada vida existente. Impérios se formavam e dissipavam como vapor. Vivia nas ruas e em castelos. E mesmo estando aquecido, de baixo das cobertas, morria de frio ao relento. Mesmo com uma mesa farta, morria de fome. Morria Rei, morria plebeu.
Os homens do oeste vieram, construíram seus impérios e escravizaram os nativos. Ele veio com os homens do oeste, ele foi escravizado junto aos nativos. Os impérios negociavam, comerciantes vinham e voltavam e ele conhecia cada rota, cada canto do mundo. A capital cresceu e se tornou uma força quase natural, como uma colmeia que se integra ao tronco da árvore. Costumes eram substituídos por costumes e deuses eram esquecidos. Estudiosos descobriam a natureza e filósofos ponderavam sobre a vida. E em cada descoberta ele foi parte importante. E em cada livro deixou suas letras.
Estava chegando onde queria, tinha que estar ou enlouqueceria. Focou-se na capital, nas pessoas que ali viviam. Procurou em cada coração que sentia bater o amor que procurava. E então, viu. Viu um casal que se amava e foi cada um dos amantes. Viu o amor deles acabar, sentiu o amor se esvair de seu peito. Ele os viu separado. O homem, um príncipe, em seu castelo fazendo juras de amor a uma nova amante. A mulher, filha de camponeses, expulsa de casa por engravidar antes de se casar, esquecida nas ruas lutando para sobreviver.
Havia chegado, o resto do mundo não era importante. Ele viu a luz pela primeira vez, mesmo a tendo visto milhares antes. Chorou da dor do parto, chorou de saudade do conforto do útero. Nasceu na rua e morreu dando a luz. Início e fim. Agora ele era aquele recém nascido. Aquela criança era quem ele procurava, iria acompanhá-lo até conseguir o que buscava. Tinha que fazer um esforço imenso para ser apenas a criança e não o resto do mundo, todos os sentimentos queriam o invadir, mas ele resistiu, focado no garoto.
Foi achado por um casal plebeu, a mulher tinha acabado de ter um filho e tinha leite de sobra. Ele enchia a barriga com o leite quente e de gosto azedo. Sentia o carinho de sua mãe adotiva, comparável ao que ela demonstrava ao seu irmão, embora não fosse igual. Estando tão focado para se manter apenas vivendo o garoto se tornava difícil deslizar pelo tempo, a vida do garoto lhe parecia correr em tempo real. O garoto crescia. Ele crescia. Brincava pelas ruas pobres de onde seus pais moravam, às margens do reino. Conhecia os amigos que lhe acompanhariam vida afora, descobria o mundo inteiro, um mundo que já conhecia bem.
Ele e o garoto se tornaram homem juntos. Trabalhava para ajudar os pais na singela alfaiataria que eles tinham. Curtiu sua juventude em tavernas e bordéis, conhecendo todo o povo do reino, entendendo a diferença entre pobreza e miséria. À essa altura, seu avô de sangue havia falecido e seu pai era Rei. Sendo assim, era um príncipe, mesmo sem saber, o príncipe de coisa alguma.
Mas o sangue que corre nas veias não mente. Ele era a representação do estado onde a fome cobrava vidas como imposto. Ensinava crianças a ler e adultos a trabalhar. Procurava entre os amigos que fizera quem o ajudasse a ensinar ofícios, recolhia alimentos doados e os distribuía entre os desamparados. Ele era amado, sentia isso, assim como o sacerdote também sentia, no templo, em transe. E para aquela figura, ser amado era uma lembrança ínfima, ele sentiu prazer.
Os tempos ficavam mais difíceis. O príncipe-de-coisa-alguma passou fome pela primeira vez, o sacerdote era um velho amigo dela. O povo se revoltava contra o Rei, organizavam motins, apedrejavam residências de nobres. E ninguém imaginaria que um dos principais opositores ao monarca tirano seria o próprio filho dele. Os sentimentos dele e do sacerdote eram um só. O desejo de mudança, a paciência esgotada, a decisão. Guerra. A plebe contra a nobreza, como geralmente é. A nobreza com recursos, a plebe com números.
O príncipe viu amigos morrerem, o sangue deles estava em suas mãos. Crianças e mulheres eram mortas sem piedade. Com tanto sofrimento e dor o sacerdote fazia um esforço imenso para se manter sendo o príncipe, ainda não tinha o que queria, não podia se desprender daquela vida. Assim, a guerra se arrastou, torturando cada alma vivente naquele tempo, mas o povo venceu. O Rei tirano foi esquartejado e o príncipe-de-coisa-alguma sentou no trono do Reino.
O sacerdote aproveitou aquele momento, sentindo coisas que não sentia na realidade há anos. Paz, tranquilidade, felicidade. O Rei governou com justiça, tirou o povo da miséria e restaurou a ordem. Vivia uma vida solitária, porém estava feliz. O Rei era amado e a figura no templo bebia o amor que ele recebia. O "Rei-Justo", assim o chamavam.
Uma paixão dos tempos de bordel o acompanhou na revolução. Pouco tempo depois de ser proclamado Rei, a tornou Rainha. Um insulto a cada família nobre de cada reino existente. A "Rainha-Puta", assim a chamavam, não na frente dele, mas sim nos becos, nos bares e bordéis, incluindo àquele no qual se conheceram. A nobreza não estava feliz, o Rei sabia disso, assim como o sacerdote podia sentir. Com a experiência que tinha, o sacerdote jamais confiaria em nenhum dos homens próximos, mas o Rei confiava, e o sacerdote os entregava confiança sem escolha.
O Rei sabia que a Rainha era um problema para os outros, mas ele a amava. O sacerdote a amava. A cada noite que os três se amavam, o sacerdote dedicava-se à fazer o tempo render, gotejar. Naquele momento, se quisesse, seria difícil deixar de ser o Rei, mas ele não queria. Quem visse seu corpo no templo, encontraria um sorriso completamente fora de sintonia com aquele lugar fúnebre e sombrio. Os corpos se tocavam e se completavam, nenhum movimento era planejado, tudo era instinto, tudo era puro, tudo era amor.
E como é normal, das noites de amor veio ela, o motivo do sacerdote ser o Rei. Aquele era o momento, o nascimento dela, Irina era seu nome, o rosto mais lindo que tanto o Rei quanto o sacerdote já viram. O sacerdote tentou parar o tempo, passaria a eternidade vendo aquele rosto, aquele rosto que nunca vira, o rosto de que tanto sentia falta. O tempo não parou, mas passou devagar, ambos aproveitaram.
Passaram três anos brincando juntos, O Rei-Justo, o sacerdote e Irina. À cada momento que o Rei saía de perto de sua filha, o sacerdote o odiava. Três anos foi o tempo que a paz durou, o sacerdote sabia, e ele temia o fim daquele período. Por isso amou a Rainha a cada noite que o Rei permitiu e mergulhou no sorriso de Irina sempre que pôde. O problema para o sacerdote era que Rei não dava a atenção necessária para as coisas mais importantes que tinha. O sacerdote percebia isso, o Rei não.
A calmaria que precede a tempestade acabou, ironicamente a tempestade veio numa tarde bonita e florida. Quando o dia amanheceu, o sacerdote o reconheceu. Desespero. Não podia ter acabado. Rei estúpido. Sacerdote estúpido. O sacerdote tentou abandonar o Rei, ele não queria viver aquele dia, não na própria pele. Mas se havia algo que Viscus era mais do que narcisista, era cruel. O supremo não deixou a consciência do sacerdote se desprender do Rei, ele iria viver tudo, como vivera na noite anterior, e na noite antes dela.
A família no jardim. Irina brincava solta, correndo atrás dos cães. A Rainha lia um livro sentada na sombra. O Rei as observava, feliz. A manhã agradável foi interrompida, o Rei foi chamado por um senhor de certa importância, de alguma família de certa nobreza. Deixou a família de lado e foi o atender. Rei estúpido. O assunto era desimportante, poderia facilmente ter sido adiado, mas não foi. O rei cria que para se manter a paz era necessário dar atenção à cada detalhe político, por isso nunca adiava nenhum encontro. O Rei voltou ao jardim e as encontrou sendo seguradas por guardas que lhes tapavam a boca. Pavor.
O tempo passou devagar, dessa vez quem o saboreava era Viscus. À frente dos guardas estava o duque, um duque no qual o Rei confiara, o duque que o sacerdote odiava. A situação lhe fora explicada, ou ele assinava uma carta de renúncia ou as duas morriam ali mesmo. Ele assinou. A rainha morreu primeiro, uma espada a atravessou a barriga. O renunciado chorou, gritou pediu clemência. A mulher de sua vida caiu ao chão. Como caíra na noite anterior, e na noite antes dela. E os olhos dela se fixaram em um ponto aleatório, sem brilho.
O sacerdote queria sair, tinha que sair. O tempo escorria lentamente. Ele tentava fechar os olhos e virar a cara, mas o corpo do ex-Rei não obedecia, ele estava catatônico. O duque falou algo sobre aprender lições, o renunciado não prestou atenção, estava completamente compenetrado em Irina, os lábios dele repetiam "Não" em um crescente sonoro constante. A lâmina correu lentamente pelo pescoço dela. Cada segundo, uma eternidade. O sacerdote sendo obrigado a assistir. Seu corpo no templo estremecia. Nessa hora o sacerdote era o traído, mas Viscus o fez ser também Irina. Ela, cujo sorriso foi o motivo do sacerdote ir até ali. Sentiu a lâmina lhe cortar, sentia o medo, sentia a certeza de que o pai a salvaria. Não salvou. O gosto do sangue que lhe entrou pelo corte na garganta. Engasgou, tentou respirar, falhou. Caiu morta no chão. Aquela imagem se prolongou por eras. A sensação era a de que milhares de anos passaram enquanto o corpo dela quicava levemente na grama.
O colocaram num navio e o abandonaram do outro lado do mundo. Um indigente. Seu castigo era viver sem elas, não lhe deram a rapidez da morte, seu castigo seria eterno. O sacerdote foi o traído, que logo se tornou o faminto, o louco. O louco ouvia histórias de um Rei que foi traído, de um povo que procurava por seu antigo Rei, mas a fome e o frio eram importantes demais para dar atenção a estórias ouvidas em becos. O louco conheceu os templos, se entregou aos supremos, mas o único que lhe deu o alívio foi Viscus, o alívio de ter sua filha de novo nos seus braços, de ver seu sorriso de novo, mesmo que fosse apenas por um breve momento. O louco se tornou o sacerdote.
Acordou no templo, caído no chão. Chorava como um bebê. Não podia ter acabado. Ele queria sua filha, queria sua mulher. Abdicaria o trono se ainda o tivesse. Ele precisava ver o sorriso de Irina mais uma vez, mas seu corpo estava estafado. Respirava com dificuldade e tentava manter a mente clara. Sentou-se e continuou chorando por um bom tempo. Não sentia mais a presença de Viscus. O supremo já havia lhe entregado o favor e cobrado seu preço. Repassou mentalmente todos os erros que cometeu durante a vida, e a consequência de cada um deles.
Ele se levantou e colocou o vishnar. O templo parecia mais vivo, as chamas estavam mais altas, os redemoinhos mais violentos. O sacerdote caminhou pelo corredor em direção à saída, a pouca luz que entrava pela porta entreaberta era suficiente para lhe cegar. Foi se apoiando em cada fileira de bancos como quem se apoia em uma muleta. Antes de cruzar a porta, no entanto, sentiu uma forte queimação em uma pequena área da mão. Olhou para confirmar o que já suspeitava. E quem parasse para contar, contaria setecentos e trinta e oito adagas tatuadas naquele corpo magro e desgastado.
Esse conto foi escrito por Raphael Maia Ribeiro para o Contos Iradex.
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