Então é Natal? | Iradex

Então é Natal?

Como é o seu natal? O que faz dele especial?

Então é Natal? é um conto escrito por Emília Braga, AJ Oliveira, Klebia Dantas, Mackenzie Melo, Lívia Lopes e Gustavo Mociaro, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


Então é Natal?

Talvez seja melhor assim, com menos gente: sem primos, sem tios, sem tias querendo saber da minha vida como se realmente se importassem. Nunca se importaram. Talvez seja melhor assim, só os mais chegados. Mais simples, mais aconchegante, simplesmente melhor.

Mas não perfeito.

Curioso pensar que todos os Natais me trouxeram a esse Natal e, por mais que todo ano seja igual, eu estou diferente. Nossa, como mudei, como mudamos! As diferenças que tentam nos afastar continuam, mas a vontade de fazer dar certo também. Família é tudo igual. E que luzinhas lindas! Natal me traz uma paz…. Mas hoje consigo entender quem não se sente bem. Será que serei assim? Quero nem pensar. Vou atrás da minha farofa que é melhor.

-Pai, e o peru? Tá pronto?


Há coisas que você imagina sendo ruins, mas quando as vive são um pouco piores. Você reclama da sujeira, do atraso, do preço do panetone e da merda da uva passa no arroz, mas nunca imagina que tudo isso é fichinha perto de uma tia tentando convencer a mesa de que seus peitos cresceram sozinhos na virada dos quarenta.

O lado ruim de parentes se encontrarem uma vez a cada eclipse é que a maioria é como aquele tipinho que não fode há anos. Um dia ele se enfeza com a situação e decide ir ao bar com um roteiro de Spielberg na ponta da língua, decidido a impressionar a primeira idiota que aparecer. Assim como o cara do bar, todos em torno da mesa são perfeitos: seus filhos fazem a escola cogitar a criação de uma média maior que o A+; os empregos são os melhores e os mais fáceis, e os relacionamentos fariam o casal Beckham se morderem de inveja. Se as crianças entendessem o que seus pais e tios estão fazendo aqui na mesa, parariam de correr pela sala e pediriam socorro até os dezoito em um orfanato de melhor índole.
Eu poderia estar na praia, ou pior, poderia estar matando e roubando, com sorte uma bala me pegaria antes do AVC causado pela tia alegar que foi apenas o Feng Shui que fermentou o tamanho de suas tetas plásticas.


Cheguei à frente do portão da antiga casa e titubeei por alguns instantes antes de me direcionar à campainha que sequer toquei, já que fui surpreendido e fortemente abraçado pelo irmão mais velho dos muitos filhos daquela família. Seus cabelos brancos já tomavam a maior parte da cabeleira, mas a calvície não lhe chegara como chegou a mim. São quantos anos de amizade? Já nem consigo mais contar, porque nossa vida foi longa e tão cheia de importantes acontecimentos desde aquele primeiro dia de aula no Liceu… Vieram as noites boêmias, a descoberta do amor, casamentos, filhos… Netos! Era uma família de muitos filhos, como muitas das famílias instituídas antes de 1950, mas o que me manteve sempre presente foi o calor com que eles me receberam e como dividiram seu pão comigo, ainda que os pães fossem contados. Sempre me senti mais bem acolhido naquele lar do que até mesmo na minha casa, e sei que a atenção deles por mim sempre foi a de mais que amigo, já que minha presença sempre fora constante nas reuniões, ainda que tenha passado muito tempo sem poder aparecer.

Entramos juntos, abraçados, gargalhando frouxo como há muito tempo eu não fazia. Passamos a antessala, onde alguns dos mais novos e uns "recém-entrados" estavam, caminhamos pelo corredor de paredes riscadas por todas as gerações que ali aprenderam a escrever e chegamos à sala principal, que era como uma junção de sala e cozinha, com uma imensa mesa de jantar onde estavam todos. Os anos marcaram seus rostos, mas o alarde nas gargantas estridentes ainda era o mesmo de antes, e essas mesmas vozes exaltaram-se por minha chegada, me queimando o rosto e abrindo um largo sorriso. Sobre a mesa reuniam-se o pratos trazidos por todos, e logo fitei o arroz especial da matriarca que uma das filhas aprendera a preparar com perfeição, fazendo-o permanecer nas ceias mesmo depois da partida daquela senhora que um dia me acolheu como seu filho. Como ele é maravilhoso, tem o sabor de memórias felizes junto deles.

Burburinho, gargalhadas, cachorro latindo, criança correndo. É, eu estava de volta à minha família.


A toalha de mesa com a cara do pretenso Papai Noel é horrenda. A farofa acabou antes mesmo de começar o jantar, mas parece que vovó foi fazer mais. Fizeram o favor de não assar bem o pernil. Não entendo o porquê de estar aqui. Não entendo o sentido do feriado (não foi nem quando Jesus nasceu realmente) e, principalmente, não entendo o motivo de uma família que briga o ano inteiro se reunir hoje e fingir que está tudo bem... Que vai ficar tudo bem.

- O pernil tá ótimo, hein?

- Certeza, tio!

Minha nossa, ela apareceu! A melhor desta família. E ela está vindo em minha direção, chegando perto com aqueles olhos maravilhosos e o corpo fofíssimo pronto para ser agarrado, ela vem e…

- Não pula em cima de mim, sua vira-lata malvada!


Tento esconder, mas é difícil. Acho que eles percebem só de me olhar. Será? Me olhei no espelho ao passar pela porta de entrada e, quando me vi, eu ainda era eu mesmo. Com apenas alguns – ok, mais que alguns – cabelos a menos, mas a mesma cara de prego enferrujado de sempre. Por dentro, entretanto, eu estou tão vivo quanto uma semente de 2000 anos.

Parece que foi ontem a última vez que estivemos juntos para a Ceia. Quantas vezes sonhei em poder estar novamente ao lado de vocês e não sabia se conseguiria. Toda vez que pensava nisso, quase que invariavelmente, no dia seguinte sonhava com algum de vocês prometendo que vinha, mas algo sempre acontecia e tudo ia por água abaixo.

- A mesa está linda! Quem foi que arrumou? Não respondam, sou capaz de adivinhar!

“Então, é Natal, e o que você fez?”

- A música... Não, não tire! Sei que muita gente não gosta, mas deixa eu aproveitar só essa vez. Pelo menos essa vez.

“O ano termina, e nasce outra vez...”

Ser o mais velho dentre todos tem vantagens e desvantagens, como tudo na vida. Felizmente sinto que, mesmo com todas as dificuldades pelas quais passamos, posso dizer, olhando nos olhos de todos vocês:

- ...

Tremendo, agora não apenas pela debilidade orgânica, mas pelo único amor que ainda sou capaz de demonstrar, elas escorrem pelo meu rosto e um pequeno sorriso se esboça em meus lábios.
Só então eu sinto. Todos, mesmo os que não gostam desse momento de celebração, sabem que esse será o meu último Natal com eles. Entretanto, é também nesse momento que percebo que a semente que plantamos juntos finalmente começa a brotar com cada lágrima derramada.

Mesmo salgadas, elas certamente servem para fazer o Amor germinar mais rapidamente.


Alguns dizem que Natal é o momento de encontrar a família, comer o quanto aguentar (e depois comer um pouco mais), trocar presentes, trocar amor, trocar.

O Natal tem diversas formas. Alguns adoram, outros preferiam passar a noite em casa vendo um filme e comendo as sobras das panelas que não couberam nas cumbucas requintadas preparadas para a ceia.

Mas o mais importante no Natal é que ele não deixe de existir. Por mais que as piadas sejam as mesmas, as músicas sejam as mesmas, e até as pessoas sejam as mesmas (ou até nenhuma), viva o momento.

Recomece, reaja, renove! E então... é Natal!


Esse conto foi escrito por Emília Braga, AJ Oliveira, Klebia Dantas, Mackenzie Melo, Lívia Lopes e Gustavo Mociaro para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright os autores e o blog deverão ser consultados.


Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.